Um estudo que analisou dados de centenas de cidades brasileiras ao longo de 16 anos sugere que o aumento de 1 grau Celsius na temperatura média pode elevar em quase 1% o risco de internações por doenças que afetam os rins.
O estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP) e
pela Universidade Monash, da Austrália, avaliou os registros de saúde de 1.816
cidades brasileiras entre 2000 e 2015.
No período, foram registradas mais de 2,7 milhões de
internações relacionadas a problemas nesses órgãos, como pielonefrite (um tipo
de inflamação), falência renal aguda e doença renal crônica.
O trabalho, recém-publicado no periódico especializado
The Lancet Regional Health - Américas, sugere que 7,4% de todas essas
internações, ou 202 mil casos de crise renal, podem ser atribuídas diretamente
ao aumento da temperatura.
A título de comparação, 202 mil pessoas equivalem
aproximadamente a população inteira de cidades como Araçatuba (SP), Lauro de
Freitas (BA) ou Passo Fundo (RS).
Aquecimento global e desidratação
Embora o estudo seja de associação e não permita
estabelecer uma relação direta de causa e efeito, os autores especulam algumas
possíveis explicações para a ligação entre aumento da temperatura e mais
doenças nos rins.
"De forma geral, os problemas renais podem
acontecer por causa da desidratação, que está relacionada ao aumento na
temperatura", explicam os médicos Yuming Guo e Shanshan Li, professores de
saúde ambiental e saúde pública da Universidade Monash e autores principais do
artigo.
Eles responderam por e-mail a algumas perguntas
enviadas pela reportagem da BBC News Brasil
A mecânica é relativamente simples: no calor, o suor
ajuda a manter a temperatura corporal estável. Mas a perda de líquidos pode
dificultar o trabalho dos rins, que sofrem para cumprir a sua missão de filtrar
o sangue e manter o equilíbrio de diversas substâncias essenciais para nossa
sobrevivência.
Esses órgãos, então, podem passar por crises agudas e
deixam de funcionar como deveriam ou sofrem com infecções e inflamações
decorrentes de todo esse desgaste.
O trabalho recém publicado ainda observou que a saúde
renal de alguns grupos acaba mais afetada pelo aumento da temperatura. Os que mais
sofrem com a subida do calor são as mulheres, as crianças com menos de 4 anos e
os idosos com mais de 80 anos.
Para o patologista Paulo Saldiva, professor da
Faculdade de Medicina da USP e um dos cientistas brasileiros que assinam o
estudo, dois fatores ajudam a explicar essa maior vulnerabilidade,
especialmente nos extremos da vida.
"Indivíduos muito jovens ou muito idosos costumam
ter o 'termostato' do corpo, que envolve receptores na pele responsáveis por
perceber o calor, imaturo ou desregulado. Com isso, o organismo não aciona
muito bem os mecanismos que regulam a temperatura", afirma.
Além disso, é necessário ofertar água continuamente
para pessoas dessas faixas etárias, pois a percepção de sede é diferente e se
modifica ao longo da vida.
Sem a vontade de beber água (ou sem a possibilidade de
pegar um copo por conta própria, no caso dos bebês), o risco de desidratação
fica ainda mais alto. E essa sequência de características e particularidades
dessas idades prejudica, mais uma vez, os rins.
Uma 'epidemia' silenciosa
A médica Andrea Pio de Abreu, diretora da Sociedade
Brasileira de Nefrologia, classifica as doenças renais como um problema de
saúde pública oculto no país.
"No Brasil, uma em cada dez pessoas tem doença
renal e muitas nem sabem disso, pois não apresentam sintomas e nunca fizeram o
diagnóstico", alerta a nefrologista, que não esteve envolvida diretamente
com a pesquisa publicada no The Lancet.
"O problema é que esses quadros podem permanecer
ocultos por anos e os rins só dão algum sinal quando operam com menos de 50% da
capacidade original", conta.
Segundo dados da própria Sociedade Brasileira de
Nefrologia e outras entidades da área de saúde, cerca de 140 mil brasileiros
passam por diálise atualmente. O procedimento, feito algumas vezes na semana,
exige que o paciente se conecte a uma máquina, que passa a fazer o trabalho de
filtragem do sangue.
A diálise é indicada num estágio avançado das doenças
renais, onde os órgãos não conseguem mais realizar seu trabalho como antes.
Abreu alerta que hipertensão (pressão alta) e diabetes
são as principais causadoras de problemas do tipo.
"Juntas, essas duas enfermidades são responsáveis
por mais de 70% dos casos de doença renal crônica", calcula.
A médica também se mostra preocupada com as mudanças
climáticas e essa relação entre temperatura e saúde dos rins evidenciada no
estudo. "Os quadros de desidratação são muito frequentes em épocas de
calor intenso, e precisamos ter cada vez mais atenção com esse risco",
admite.
Como se proteger?
Cuidar dos rins num cenário de aquecimento global
exige as mais variadas ações, que vão desde atitudes simples até políticas
públicas complexas.
Os cientistas Guo e Li adiantam que as cidades mais
afetadas pelas mudanças climáticas precisarão criar sistemas de alarme para
proteger a saúde das pessoas.
"Alguns países, por exemplo, vão necessitar de
uma comunicação eficiente para ensinar a população sobre os cuidados e
eventualmente até criar 'centros de resfriamento' nas temporadas de
verão", sugerem.
Saldiva também cita as mudanças em ambientes urbanos
que podem segurar o avanço da temperatura. "É preciso fazer uma
recomposição da cobertura vegetal das cidades, que em muitos casos viraram um
deserto de lajes de concreto", classifica.
"Nos períodos de calor, também devemos ter maior
atenção com os mais vulneráveis, como crianças e idosos, se hidratar bem e usar
roupas leves", acrescenta o patologista.
"Também é importante passar por consultas médicas
regularmente, controlar diabetes e hipertensão e fazer testes simples que
avaliam a saúde renal, como o exame de urina e a dosagem da creatinina no
sangue, que são amplamente acessíveis no sistema público brasileiro", acrescenta
Abreu.
Por fim, a nefrologista cita uma estratégia fácil de
adotar no dia a dia para prevenir problemas mais sérios: olhar a cor da urina,
que deve sempre ser amarela clara ou quase transparente.
"Se ela estiver muito amarelada ou escura, é sinal
de que não estamos bebendo água o suficiente", conclui a médica.
Urgência das mudanças climáticas
Pesquisas desse tipo já haviam sido feitas em outros
países.
"Até então, os estudos que investigam as doenças
renais relacionadas ao calor foram conduzidos nos países desenvolvidos, e
tínhamos poucos dados disponíveis sobre o que acontece em nações de baixa e
média renda, como o Brasil", observam Guo e Li.
"Essas enfermidades são uma preocupação na saúde
pública e estiveram relacionadas com 2,5 milhões de mortes no mundo em 2017.
Precisamos entender melhor como as alterações de temperatura influenciam esse
cenário", dizem os especialistas.
Para o patologista Paulo Saldiva, entender a relação
entre fatores ambientais e saúde aproxima a ameaça das mudanças climáticas da
realidade de todos nós.
"Aquele discurso distante, de que precisamos
mudar as coisas para estabilizar a temperatura daqui a 70 anos e salvar a
Amazônia e os ursos polares, é substituído pela urgência do agora, pois o
problema está aqui na nossa frente", analisa.
"Não precisamos esperar tanto tempo para a
situação ficar ruim. As mudanças climáticas estão acontecendo e já afetam a
nossa saúde", chama a atenção.
André Biernath, BBC News
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