“(...)’João Cabral foi um grande artífice, um exímio poeta no sentido de lidar com as palavras, imagens e ritmos e criar coisas novas.’(...)”
Livro de Ivan Marques conta a história do poeta que
tentou esconder a si mesmo de seus versos
Com um estilo calculadamente racional e enxuto de
subjetividade, João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nunca pretendeu desnudar a
própria vida em seus poemas. Desinteresse que não foi compartilhado por seus
admiradores, presenteados agora com João Cabral de Melo Neto – Uma biografia,
livro escrito por Ivan Marques, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Nascido em Recife, nos braços de uma família
pertencente à elite açucareira, repleta de bacharéis e advogados, João Cabral
passou a infância nas paisagens de engenhos das cidades de São Lourenço da Mata
e Moreno. Antes de se entregar à poesia, sonhou com o futebol profissional e
foi um craque juvenil. No final da adolescência, frequentou a vida intelectual
do Recife e depois partiu para o Rio de Janeiro, onde conheceu Carlos Drummond
de Andrade, que se tornaria seu grande amigo e referência. Foi lá também que
publicou o primeiro livro, A pedra do sono, em 1942.
Sem interesse em ocupar posições tradicionais das
elites, tais como as proporcionadas pelo curso de Direito da prestigiosa
Faculdade do Recife, não frequenta nenhuma universidade. Após breve passagem
pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), passa a integrar o
quadro de diplomatas brasileiros, a partir de 1946, um ano depois de publicar O
engenheiro. Faz assim da diplomacia sua carreira, com estabilidade para se
dedicar à poesia e possibilidade de conhecer outras culturas. Serve em Londres,
França, Paraguai, Senegal, Portugal e Espanha, lugar que o marca profundamente
e impacta sua poesia.
Das experiências da Espanha dominada pelo franquismo,
das reflexões sobre a miséria brasileira e das leituras marxistas surgem as
cores sociais de obras como O cão sem plumas (1950) e O rio (1954). É também a
consciência social que o coloca em problemas quando é perseguido, acusado de
integrar uma célula comunista no Itamaraty, e passa quase três anos afastado de
suas funções, ainda no início dos anos 1950. Tensão que não impede, entretanto,
a confecção de seu trabalho mais famoso, Morte e vida severina, de 1955, uma
encomenda de Maria Clara Machado, então diretora da companhia teatral O
Tablado.
Embora a própria companhia não levasse a montagem
adiante – para frustração do autor –, em 1965 o sucesso estratosférico da
encenação no Tuca, em São Paulo, com músicas de Chico Buarque, consagraria João
Cabral para o grande público e serviria do carimbo definitivo para sua entrada
na Academia Brasileira de Letras, para a qual é eleito em 1968.
João Cabral encerra a carreira diplomática no início
dos anos 1990, depois de se tornar cônsul da cidade do Porto, em Portugal. Uma
cegueira progressiva, que o impede de ler e escrever, perpassa sua vida por
toda a década, acompanhada da depressão. Falece, finalmente, em 1999, no Rio de
Janeiro.
Singularidade
João Cabral surge como poeta nos anos 1940, sendo
usualmente enquadrado no que ficou conhecido como a Geração de 45 ou a terceira
geração do Modernismo. “Ele tem uma singularidade não só com a tradição
brasileira, mas com a compreensão geral do que é a poesia”, comenta Marques.
“Ele discute a tradição lírica e o próprio conceito de poesia, negando que ela
seja inspiração e propondo que a poesia seja muito mais o resultado de um
trabalho de arte do que o produto das emoções do poeta ou de qualquer vaga e
obscura inspiração.”
A dicção poética seca levou parte da crítica a
caracterizar João Cabral como um construtivo, um sujeito que racionaliza a
construção poética. Para alguns, comenta Marques, sua poesia não seria apenas
fria, mas mineral, tomando por referência a pedra, imagem central na obra do
pernambucano. “João Cabral foi um grande artífice, um exímio poeta no sentido
de lidar com as palavras, imagens e ritmos e criar coisas novas.”
Essa lapidação da palavra, entretanto, não impediu que
sua poesia também tivesse emoção, afirma o biógrafo. Marques cita a expressão
“máquina de comover”, presente na epígrafe de O engenheiro, como uma imagem
para o próprio fazer poético. “Ali fica claro que a emoção está presente na
obra. Mas ela é produzida racionalmente.”
Essa abordagem inovadora do que é a poesia seria
determinante para as gerações seguintes. “Não podemos deixar de mencionar, como
prova da novidade que João Cabral representa e da novidade que injeta na poesia
brasileira, a influência que ele tem nas vanguardas posteriores. Ele
influenciou a vanguarda poética dos anos 1950, que quis radicalizar a ideia do
poema como artefato a ser construído radicalmente”, explica o professor. “A
imagem do poeta engenheiro foi decisiva para a poesia concreta.”
Marques avalia, contudo, que a influência de João
Cabral não foi localizada apenas entre os concretistas. Para o biógrafo, toda a
poesia e arte engajada dos anos 1960 também são tributárias de sua obra. “O
fato de Morte e vida severina ter essa montagem de sucesso, nesse momento
crucial da história brasileira, mostra que João Cabral teve um poder de
irradiação para fora da poesia.”
Futebol,
dor de cabeça e melancolia
A construção do livro, explica Marques, mobilizou uma
variedade de fontes que incluem entrevistas com familiares, amigos e editores,
trabalhos anteriores dedicados ao poeta, jornais e revistas e a correspondência
publicada e inédita que o autor manteve ao longo da vida. O professor conta que
a própria obra de João Cabral também serviu de fonte fundamental. O que poderia
soar estranho tendo em vista um autor que sempre se escondeu de seus versos,
recusando a primeira pessoa. O biógrafo pontua, contudo, que é exatamente nos
poemas que repousam os temas e obsessões da vida de João Cabral, como
Pernambuco, a Espanha – sobretudo Sevilha, com suas touradas e a dança flamenca
– e a própria poesia.
Com tudo isso, Marques entrega ao público uma peça de
560 páginas, dividida em 20 capítulos, que acompanha a trajetória de João
Cabral desde a infância até a morte em 1999. No prólogo, o professor conta não
o nascimento da pessoa João Cabral, mas do poeta: o livro abre com o relato da
primeira viagem feita ao Rio de Janeiro, no carnaval de 1940. Momento decisivo
no olhar de Marques, pois é nesse episódio que o pernambucano conhece
pessoalmente nomes importantes da poesia nacional como Drummond, Murilo Mendes
e Jorge de Lima.
A partir do capítulo seguinte, a narrativa toma rumo
cronológico e frequenta tanto aspectos da vida privada do poeta quanto as
circunstâncias em torno de sua obra. É assim que entramos em contato com
informações menos imediatas da biografia de João Cabral, como suas experiências
com o futebol.
“Ele foi um craque aos 15, 16 anos”, conta Marques.
“Ele era um atleta promissor, inclusive atuando ao lado de jogadores como
Ademir de Menezes, que depois seria um grande nome do futebol brasileiro.” Fato
curioso desta relação futebolística é que, embora a família paterna estivesse
ligada ao América do Recife e este fosse seu time de atuação e coração, foi
pelo Santa Cruz, time da família da mãe, que João Cabral ganhou seu único
título. Isso porque, após o América ser eliminado de um torneio, João Cabral foi
chamado para disputar a final pelo Santa Cruz, sagrando-se campeão.
Nessa idade a literatura ainda não se apresentava como
um futuro possível para o jovem João Cabral. A escolha pela poesia viria alguns
anos depois, após desistir da ideia de ser crítico literário, por achar que
precisaria de muito estudo para o posto e não estaria à altura. “No final da
adolescência ele começa a ler poetas modernistas e a fazer, com 17, 18 anos, os
primeiros poemas, que não tinham nada a ver com aquilo que sua poesia seria”,
revela Marques. “Era um poeta jovem imitando outros poetas e descobrindo pela
via do Modernismo a possibilidade de escrever poesia.”
Outro dado relevante da biografia de João Cabral
apresentado pela obra é a dor de cabeça crônica que acompanharia o poeta por
quase toda a vida e, segundo Marques, constitui um tópico decisivo para
entender seu temperamento. “Ele passou a vida consumindo uma quantidade absurda
de aspirinas, o que inclusive trouxe outros problemas de saúde”, conta o
professor. “Passar o tempo todo com dor de cabeça interferia em seu humor, sua
visão de mundo e na forma como ele se relacionava com as coisas.”
De acordo com o biógrafo, além de muitas tentativas de
tratamento, o poeta teria feito ao longo da vida cerca de 30 cirurgias para se
livrar do problema. Entre métodos convencionais e alternativos, começou a
imprimir livros quando estava em Barcelona, iniciando uma carreira de tipógrafo
sob aconselhamento de um médico que lhe sugeriu atividades manuais como
terapia. O resultado não foi o esperado e só muitos anos mais tarde o problema
seria sanado, graças a uma intervenção cirúrgica.
Junto às dores de cabeça, a depressão é outro problema
que atravessa toda a biografia de João Cabral. Considerada pelo próprio como
melancolia, do tipo declamada pelos poetas do século 19, pode também, como
aponta Marques, ser chamada de angústia. “A angústia é um sentimento muito
presente”, comenta o professor. “João Cabral era uma pessoa com muita
sensibilidade, nervos à flor da pele, muito emotivo, o contrário da imagem que
se faz do poeta. Isso fica claro para quem lê.”
Além de se irritar facilmente, o poeta carregava um
temperamento propenso a problematização. Com uma vida interior movimentada e em
certa desordem, o próprio João Cabral dizia que era na poesia que buscava
organizar essa melancolia. Um processo nem sempre fácil, pois, conforme aponta
Marques, apesar de conhecer a própria grandeza, João Cabral precisava
constantemente ser lembrado disso, para não viver a sensação de não ser
reconhecido.
“Não que ele tivesse do que reclamar, pois foi um poeta
muito bem acolhido desde cedo. E seu valor e grandeza foram reconhecidos
rapidamente: um poeta que, com menos de 30 anos, tem três ou quatro livros e já
era considerado um ponto de inflexão na poesia brasileira.”
Marques ressalva, contudo, que nenhum desses problemas
impediu que João Cabral estabelecesse relações de amizade ao longo da vida,
seja no Brasil ou nos países em que esteve como diplomata. Dono de grande
generosidade, ajudou artistas silenciados pelo franquismo na Espanha e teve
contato com nomes como Vinicius de Moraes, Rubem Braga e Clarice Lispector,
ocupando uma posição central para além do próprio campo da poesia.
“O tipo de poesia que ele colocava em cena era muito
particular, como antipoesia e negação da poesia lírica tradicional. Era uma
singularidade enorme que o deixava em uma posição de certo deslocamento dentro
de uma tradição poética brasileira e de língua portuguesa”, destaca o
professor. Essa divergência, entretanto, não se traduzia nas relações pessoais.
João Cabral considerava Vinicius de Moraes muito sentimental, por exemplo, mas
isso não impediu que fossem grandes amigos. “Ele era uma pessoa que se
relacionou muito bem isso e isso é um dado curioso de sua biografia.”
Vida
e obra
Apesar desse contraste não ser desconhecido de Marques
no início de suas pesquisas, sua dimensão o surpreendeu. “É o contraste entre
uma obra muito bem organizada e uma vida pessoal um tanto mais dramática, seja
pelas doenças, dor de cabeça, insegurança, uma certa paranoia que vem desde a
infância. João Cabral era uma pessoa muito sensível e atormentada. Essa é uma
palavra que ouvi muito ao longo das entrevistas: ele era um homem bastante
atormentado.”
Para o professor, a influência das experiências de vida
sobre a própria obra do poeta é outro ponto sobre o qual o livro lança luz.
“Por exemplo, Morte e vida severina. Muitos acham que foi um acidente, um acaso
em sua obra, uma encomenda recebida de Maria Clara Machado e um texto feito
rapidamente, sobre o qual ele passou o resto da vida dizendo que tinha
vergonha. Mas ele sabia que era um grande texto, amigos reconheceram sua
qualidade, mesmo enquanto ele dizia que era a pior coisa que tinha feito.”
Segundo Marques, a biografia mostra que, em vez de acidente,
tudo foi fruto de uma trajetória consciente do poeta. “Ele já havia se
convertido ao marxismo antes mesmo de ir para a Espanha pela primeira vez. Mas
na Espanha, tomando contato com os autores espanhóis, João Cabral começa a
perceber a importância das fontes populares, da dicção popular, do vocabulário
concreto, da rima toante e dos ritmos primitivos. E ele faz uma série de obras
em uma sequência muito consciente. Escreve O cão sem pluma, depois O rio e
finalmente Morte e vida severina, formando uma trilogia. Portanto, não é algo
casual, desleixado ou imprevisto.”
Diplomacia
e comunismo
Faceta menos celebrada da vida de João Cabral, a
diplomacia surge, conforme explica Marques, como um meio de vida e
possibilidade de viver fora do Brasil. De acordo com o biógrafo, a documentação
levantada revela um funcionário correto, mas imerso em atividades burocráticas
e com poucas ações de relevo. João Cabral não teria investido grandes energias
na carreira e só chegou ao posto de embaixador tardiamente, na África, praça
periférica no tabuleiro geopolítico. “Ele queria mesmo poder escrever e
sustentar a família”, aponta o professor.
Essa atuação discreta não significa, entretanto, que
sua passagem pelo Itamaraty ocorreu sem sobressaltos. O episódio mais
conhecido, e também mais dramático, ocorreu no início dos anos 1950, quando foi
acusado de tentar implantar uma célula comunista na diplomacia brasileira ao
lado de outros colegas de profissão.
O interesse de João Cabral pelo marxismo e as pautas
sociais pode ser traçado a partir de sua mudança para o Rio de Janeiro, com
destaque para seu convívio com Drummond, que vivia então sua fase poética mais
social, na qual produzira obras como Sentimento do mundo, José e A rosa do
povo. A experiência carioca de João Cabral marcaria uma reviravolta política
que se concretizaria na Espanha.
Lá, o poeta aprofunda suas leituras, interessado na
discussão teórica e posicionado em um papel de resistência ao franquismo. É
embalado por essa energia, quando residia em Londres, que rascunha uma carta
endereçada a outro diplomata, Paulo Cotrim, solicitando ao colega um artigo
sobre a economia brasileira para um periódico britânico. O documento acaba
vazando pelas mãos de outro diplomata, Mário Calábria, e torna-se argumento
contra João Cabral, amplamente manchetado de maneira sensacionalista no jornal
Tribuna da Imprensa.
Para Marques, o contexto da Guerra Fria, com o auge da
caça às bruxas do macartismo, aliado à situação brasileira, explicam a dimensão
do episódio. “Carlos Lacerda era um político de oposição a Getúlio Vargas,
tinha um jornal, a Tribuna da Imprensa, e resolveu atacar o Getúlio via
diplomatas do Itamaraty, que foram todos acusados de fazer parte de uma célula
comunista internacional.”
João Cabral acaba afastado de suas funções em 1952 e só
é readmitido em 1955. Volta a viver no Brasil durante esse período, no qual
trabalha como jornalista. Segundo Marques, o episódio traumático o afastaria de
um envolvimento mais ativo com a política, impedindo-o de ser um artista mais
afirmativo nas críticas durante a ditadura militar. “Até o sucesso de Morte e
vida severina era visto com certo desconforto, porque a peça lembrava aos
militares que ele era alguém com uma posição de esquerda”, revela o professor.
Luiz
Prado, no Jornal da USP
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