Por Elizabeth Reyes L., no El País
No meio de uma tarde sonolenta, algo habitual no Caribe colombiano, um dos muitos celulares de Martín Murillo tocou várias vezes sem ser atendido. Uma amiga de Mercedes Barcha, a viúva de Gabriel García Márquez, estava procurando por ele para dar um recado. Murillo estava viajando por uma das muitas cidades perdidas no sul de Bolívar. A Gaba, por outro lado, estava hospedada em sua casa em Cartagena das Índias. Fazia pouco mais de um ano que o Prêmio Nobel tinha morrido e queria dar um presente.
“Isso ocorre quando se limpam as bibliotecas”, diz Murillo. Mas a verdade é que esse presente, que Barcha entregou há um mês sem protocolos, é uma pequena grande herança do escritor colombiano: 316 livros da biblioteca que ele tinha na cidade murada e que qualquer colecionador guardaria como um tesouro. Esse mulato, nascido há 47 anos na região do Pacífico e que vive há mais de 10 no Caribe, sabe que é um privilegiado. Ele não era, como se poderia pensar, amigo do escritor, embora tenham se conhecido. As razões para a doação têm a ver, na verdade, com esse personagem que Murillo construiu nos últimos oito anos e que parece tirado de Macondo.
Isso foi o que disse o Nobel em 2010, quando, na entrada dos escritórios da Fundação Nuevo Periodismo Iberoamericano, perguntou pelo famoso Carrinho Literário, uma livraria ambulante, minúscula, nômade e gratuita, que Murillo criou em 2007. Desde então, esse homem que estudou até a quinta série, que quando era jovem só lia sobre beisebol e basquete, que vendeu água, café e arepas recheadas na rua, se tornou o promotor da leitura com uma estratégia que surpreendeu muitos. Murillo percorre com sua biblioteca móvel as ruas de Cartagena e os caminhos empoeirados das cidades do estado de Bolívar. Empresta os livros, lê para crianças e nunca cobra.
“Sim, Gabo me disse: Isso é macondiano.”
Murillo criou em 2010 o Carrinho Literário, uma livraria ambulante, minúscula, nômade e gratuita
O escritor o viu pela primeira vez há mais de 30 anos em La Guajira, no norte da Colômbia, quando visitava uns parentes. A notícia se espalhou como fogo e Murillo teve a sorte de vê-lo atravessando uma rua. A segunda vez foi em 2007, em Cartagena, quando García Márquez foi o convidado de honra do Congresso Internacional da Língua Espanhola. “Fui tocado nesse momento maravilhoso, quando ele disse que, nem no seu sonho mais remoto imaginou que Cem Anos de Solidão teria uma tiragem de um milhão de exemplares”. Depois aconteceu o encontro em 2010 quando o escritor falou uma frase muito importante para Murillo: “É preciso gostar muito do que se faz, esse é um dos grandes segredos da vida”.
A ideia de construir um carrinho literário aconteceu de repente, quando falava com um amigo que vendia suco. Pensou em enchê-lo de livros e levar aos colégios, “onde for preciso procurar o leitor, mas que para o leitor não custasse um centavo”, lembra. O problema da sustentabilidade foi resolvido quase imediatamente com a ajuda de patrocinadores.
“É preciso gostar muito do que se faz”, disse García Márquez ao Carretero, como ele é chamado
É engraçado, ele diz, mas os estudantes muitas vezes perguntam: “E essa coisa dá dinheiro?”. A resposta continua sendo a mesma: “Está tudo na publicidade”. Portanto, desde o início, o Carretudo, como é conhecido, estava armado com uma câmera fotográfica para registrar a caminhada do carrinho. Também foi fundamental que Cartagena seja sede do Hay Festival, um espaço cultural no qual sua reputação transcendeu a tal ponto que escritores como Mario Vargas Llosa e Salman Rushdie não resistiram à tentação de empurrar seu carrinho.
Essa pequena caixa de madeira, que não supera um metro de altura e onde há espaço para apenas 200 livros, tem obras clássicas, de ganhadores do prêmio Nobel e literatura infantil. Durante muito tempo, todos os domingos, Murillo estacionava no Parque Bolívar, coração do centro histórico de Cartagena, onde atendia a jovens e turistas. Depois começou a ler em voz alta, a dar oficinas de leitura nas cidades e conferências a professores e pais.
Sua pequena caixa de madeira, que não supera um metro de altura e onde há espaço para apenas 200 livros, tem obras clássicas, de prêmios Nobel e literatura infantil