Por Cristiane Segatto, na Revista Época
Com uma tabela nas mãos, uma de suas cuidadoras pronuncia as letras do alfabeto. Leide olha para o lado esquerdo para escolher “sim” e para o direito para dizer “não.
Leide sofre de uma doença neurológica degenerativa chamada esclerose lateral amiotrófica (ELA) – a mesma do físico inglês Stephen Hawking. Não fala, não anda, respira com a ajuda de um aparelho e alimenta-se por meio de sonda. Sequer pisca.
A doença, descoberta em 2005, roubou todos os movimentos da mulher ativa e independente que adorava fazer musculação e correr no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Restou o olhar.
A história de Leide foi contada na excelente reportagem de Solange Azevedo, publicada em ÉPOCA em 2008. A advogada lança agora seu terceiro livro.
Em Não espere de mim apenas poesias, a família reuniu textos poéticos e mensagens cotidianas. Eles expõem os sentimentos e as sensações de quem perdeu os movimentos, mas não o controle sobre a própria vida. Em breve, um PDF da obra poderá ser acessada no site da autora.
Leide nunca vestiu a fantasia de coitadinha. Reclama, se posiciona, dá broncas e administra a casa com rédea curta. Das obrigações chatas como declarar o Imposto de Renda à dificuldade de encontrar bons cuidadores, os desabafos da advogada estão todos lá. Nada foi suprimido ou enfeitado pela família.
Nas páginas da direita, o leitor encontra a visão poética de Leide. Como no agradecimento sincero a Ivania Soares, que há dez anos comanda as cuidadoras que se revezam para atender a advogada. Nas da esquerda, estão as conversas do dia-a-dia. São comunicações cruas e diretas. O conjunto surpreende.
Para alguns leitores, a leitura pode ser dolorida como um soco no estômago. Para mim, as palavras de Leide soam como um registro precioso da vida como ela é.
Reproduzo abaixo algumas poesias e, em itálico, as mensagens anotadas no mesmo dia ou em dias próximos.
CIRANDA
(18/04/2007)
Cheguei olhei
E confesso me espantei
Parei respirei
E confesso voltei
Desconfiei encarei
E confesso me encantei
Não dormi nada.
Colírio uma gota só. Todos.
Agendar consulta oftalmologista.
Auxiliar bagunçou o jornal.
Sabonete para Midi.
Banho aqui. Tânia tomar banho em meu banheiro.
Para coroa: “Saudades, minha mãe. Sua filha Leide, netos e bisnetos.”
Imposto de Renda enviar para Bill.
Quarto de Franca, o tapete pode estar lá.
Pedir para Leila olhar a despensa.
Manta.
Eu a vi lá fora.
Não quero mais saber dessa história.
Colírio já. Pôr agora.
Ligou para Olga?
Quarto para Nadir. Janela abre toda.
Quero dar um perfume para a Nadir.
Colírio pingar agora.
Não é cabeça.
É dor nos olhos. Abrir os olhos dói.
Compressa nos olhos.
Não é para deixar tanto tempo.
Não quero mais falar.
BENJAMIM
(31/08/2010)
Bonita é a rosa
Querida é amarela
Benjamim quer lhe beijar
Néctar de meu coração
Obra da natureza
Sinônimo de beleza
Compositor de minha poesia
Não deixarei de lhe apreciar
Bondoso vem em minha janela
Todos os dias me visitar
Agrada a todas assim
Cantando para mim
Calor. Quero umidificador.
Ligar Cris.
Não me olharam. Boca escorreu.
Elas viraram errado. Não sabem aspirar a boca.
Travesseiro costas ruim.
Nós vamos conseguir outras pessoas.
Eu não quero que coloque minha mão em cima de mim.
Avise todas.
Não dieta. Quero chá o dia todo.
Colocar açúcar na água.
Escreva no caderno.
Escreva no caderno tudo o que eu falar.
Abreviar banho e tudo que é utilizado no banho.
Desligar rádio.
Além das mudanças de auxiliares, têm mais situações incomodando.
Não durmo.
Cansaço no corpo.
Medo de morrer.
IVANIA
(03/12/2010)
Ivania como iria esquecer
Quero lhe agradecer
Nada neste mundo
Paga o que faz por mim
Tem um bom coração
Na vida tudo se pode alcançar
Carinhosa amiga
Gosto muito de você
Calor.
Compressa agora.
Não foi oferecido.
Não escuto as meninas à noite.
Avisar para falar mais alto.
Medo de morrer dormindo.
Não quero falar.
NATAL 2014
(09/11/2014)
Paz felicidade
Desejo a toda a humanidade
E um Feliz Natal
Olá, Diego (*)
Traga felicidade para meu dia com saudade.
Precipitei, fantasiei teu rosto bonito.
Hoje, eu me sinto muito feliz em saber que terei o terceiro neto.
Quando você estiver com 12 anos,
espero que seja educado, carinhoso e estudioso igual a seus pais.
Agora, é só esperar o dia de seu nascimento.
Com braços abertos, de sua avó que te ama.
Leide.
(*) Bilhete de Leide para Diego, seu terceiro neto, escrito durante a brincadeira realizada no chá de bebê. Na ocasião, cada convidado foi sorteado com um número que correspondia à idade na qual o bilhete deverá ser lido. Leide foi sorteada com o número 12.
O novo livro foi organizado pelos filhos da advogada. A produtora cultural Leide Jacob orgulha-se de ter recebido o nome da mãe. “Quando eu era criança, ela me dizia que, para um bom entendedor, meia palavra basta”, afirma. “Agora, está tudo nas entrelinhas.”