Pesquisa da USP analisa as mudanças nos centros e periferias urbanas, juntamente aos papéis sociais das mulheres nos últimos anos
As cidades brasileiras foram
mudando ao longo do tempo, junto às suas formas de produção de trabalho e
capital. Com elas, ocorreram transformações humanas que, de forma interligada,
caracterizaram os aglomerados urbanos. Em sua dissertação de mestrado na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Carolina Freitas analisa
como se deu essa relação entre mulheres e periferia.
Entre 2016 e 2018, Carolina
produziu sua dissertação de mestrado intitulada Mulheres e periferias como
fronteiras: o tempo-espaço das moradoras do Conjunto Habitacional José
Bonifácio, com a orientação da professora Maria Beatriz Cruz Rufino. O objetivo
da pesquisa era compreender as transformações do espaço periférico e papéis
sociais das mulheres, e como isso se relaciona. “Eu entendi que essas
experiências de mobilização política se cruzavam e me senti estimulada a
investigar teoricamente este cruzamento, suas determinações numa realidade mais
geral e complexa que é a própria produção das metrópoles no século 21,
sobretudo na periferia do capitalismo”, explica a pesquisadora.
Carolina dividiu seu estudo
em dois ciclos de análise: de 1970 a 1985, e 2000 a 2015, porque foram os
momentos de criação de programas de incentivo financeiro à construção de
moradias populares, respectivamente pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) e
pelo Programa Minha Casa, Minha Vida.
A política habitacional
implementada no Brasil pelo BNH criou os Conjuntos Habitacionais (Cohabs). Para
refletir sobre as cidades, Carolina escolheu analisar o Conjunto Habitacional
José Bonifácio (Cohab 2) em Itaquera, na zona leste de São Paulo, que obteve
crescimento nos dois ciclos de estudo. O método de pesquisa foram entrevistas
com as moradoras da Cohab 2 de Itaquera.
A pesquisa
A ideia de empreender a
pesquisa veio do ativismo feminista da pesquisadora. Há mais de dez anos,
Carolina faz parte do movimento feminista em São Paulo. “A trajetória de vida
de quem faz a pesquisa sempre motiva a atividade de pesquisar”, afirma. Pouco
tempo antes de iniciar sua pesquisa, em 2015, havia acontecido a Primavera
Feminista e a Marcha das Mulheres Negras, ambas iniciativas a favor dos
direitos das mulheres, que, de acordo com Carolina, inspiraram seu trabalho.
“Foi um ano-chave para o feminismo e eu estava embalada por essa inspiração”,
lembra.
Na estrutura da pesquisa,
Caroline optou por explicar individualmente as transformações históricas do
Conjunto Habitacional e, em seguida, o trabalho feminino. No primeiro capítulo,
há a descrição de como a classe operária foi submetida a um padrão periférico
de urbanização e degradação arquitetônica que se diferenciavam da acelerada
urbanização na cidade de São Paulo no século 20. “Por outro lado, este tipo de
habitação promovida pelo Estado passou por intensas transformações em sua
consolidação, que transbordaram seu processo de homogeneização característico”,
explica a pesquisadora.
No segundo capítulo,
Carolina expõe o comportamento feminino diante das transformações de um cenário
urbano industrial, com um centro expressivo, para uma ampliação econômica às
periferias da cidade. Por fim, relacionou a trajetória dessas mulheres e de
suas moradias.
O andamento da pesquisa
contou com dificuldades para acessar as moradoras da Cohab 2, por causa de suas
jornadas de trabalho, restando pequenos intervalos de tempo para realizar as
entrevistas. Apesar disso, em virtude do conteúdo rico de suas respostas a
pesquisadora manteve esse método de pesquisa. “A maioria das mulheres
entrevistadas, por certo, demonstrariam a inexistência de tal tempo ao serem
perguntadas, em razão da multiplicidade de trabalhos por que são responsáveis
dentro e fora de casa”, conta ela. “As respostas obtidas, em verdade, não
seguiram exatamente o previsto, apresentando-se mais complexas do que o esquema
inicial concebido”, complementa.
Cidades operárias
Carolina decidiu investigar
teoricamente o cruzamento entre mulheres e metrópoles do século 21, sobretudo
nas periferias. A partir da definição do tema, ela o dividiu em suas esferas de
análise: as relações de gênero e raça, por um lado, e produção do espaço periférico
urbano, por outro. “Isto implica mobilizar estes processos de transformações
espaciais das periferias urbanas e do cotidiano das moradoras das periferias
como uma unidade econômica contraditória, um emaranhado de tempos que se
materializam numa forma socioespacial”, explica ela.
No final do século 20, a
cidade de São Paulo era regida por uma economia industrial. O papel da mulher
nesse cenário era habitar uma cidade-dormitório, enquanto o homem iria
desempenhar suas atividades fabris no centro. A partir da década de 1970, há
uma desconcentração industrial, que movimenta uma nova economia em direção às
periferias. “As fábricas saem da cidade de São Paulo, e ela passa a ter uma
outra economia política urbana”, observa Carolina.
Com essa mudança, houve um
crescimento do mercado imobiliário para as áreas afastadas do centro, de forma
que construtoras voltassem sua atenção para a moradia local. “Não é mais
voltado para quem pode pagar, mas para quem pode essencialmente se endividar”,
explica a pesquisadora da FAU. “As incorporadoras vão usar de financiamentos
para construir uma imitação rebaixada daquilo que elas já faziam nos bairros
caros da cidade”, complementa.
Além disso, os programas de
incentivo à moradia também eram formas de minimizar crises de insatisfação da
população frente ao regime político em questão, direcionando-a ao sonho da casa
própria. “Os projetos habitacionais do BNH surgem também como uma condição
ideológica de apaziguamento da ditadura”, explica Carolina. “Havia altas taxas
de exploração. Você trabalhava muito e recebia pouco”, complementa.
Carolina também observa o
processo de trabalho informal para a construção desse agrupamento urbano. “O
País deixa de ser eminentemente rural e passa a ser um país urbano. Uma
‘urbanização de baixos salários’, ou seja, produzida sobretudo a partir do
trabalho não pago do proletariado migrante que veio para as grandes cidades”,
explica. “A maior parte da classe trabalhadora morava em lugar construído
batendo laje em final de semana com seus vizinhos”, complementa. Vale ressaltar
que o BNH subsidiava apenas trabalhadores de carteira assinada, que poderiam
usar seu FGTS na construção de sua habitação.
Apesar de sua experiência
pessoal de moradia na Cohab 2, Carolina escolheu esse eixo pela importância histórica
que o local apresentava. “A Cohab 2 foi uma experiência contundente da política
habitacional da ditadura empresarial-militar brasileira e de um momento da
produção espacial da metrópole de São Paulo”, conta ela. “De um lado,
trabalhadores, com suas próprias mãos, construindo as suas habitações e, por
outro, o Estado produzindo habitação em massa”, completa.
A partir de produções e
apropriações, a Cohab foi desenvolvida como uma expansão do mercado imobiliário
que teve lugar nas décadas 2000-2010. “Busquei interpretar semelhanças e
diferenças entre esses dois ciclos no que se refere à concepção da habitação
pelo Estado brasileiro, e tentei refletir sobre a concepção subjacente de
domesticidade desses projetos arquitetônicos, visto que se articula com as
atividades práticas das mulheres na reprodução social da classe trabalhadora”,
conta a pesquisadora.
Mulheres e periferias
As primeiras moradoras que
ocupavam as cidades-dormitório da época industrial já desempenhavam um papel
decisivo no trabalho informal, em comércios de garagem e serviços artesanais.
Ao mesmo tempo, preenchiam cargos públicos que se davam nesses espaços. “Elas
foram virar as merendeiras das escolas, as auxiliares de enfermagem, as
assistentes sociais, educadoras das creches etc.”, conta Carolina.
As gerações atuais enfrentam
outros desafios, como a distância das periferias aos centros urbanos que ainda
regem poder. “Essas meninas mais jovens, diferente das suas mães e das suas
avós, precisam atravessar a cidade para trabalhar”, exemplifica a pesquisadora.
“Deslocamentos de uma cidade muito mais fragmentada, que impõe você morar num
lugar e trabalhar diametralmente em outro”, complementa.
Ainda sim, existem mulheres
que desempenham trabalhos informais nos conjuntos habitacionais. “Eu acompanhei
mulheres que faziam costura em seus apartamentos, mas elas estavam fazendo
costura para grandes marcas”, afirma Carolina. “As mulheres são o laboratório
do mundo de trabalho neoliberal”, completa.
Porém essas personalidades
femininas podem cruzar suas trajetórias de trabalho. Ao Jornal da USP, Carolina
conta sobre mulheres que vão trabalhar do outro lado da cidade e deixam seus
filhos com outras mulheres enquanto trabalham. “Mulheres que não fazem o
trabalho da creche nos seus apartamentos de maneira amadora, mas de maneira
quase empreendedora e profissional”, explica ela.
Jornal da USP, Camilly
Rosaboni
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