“(...) Hortas urbanas têm um papel importante no combate à insegurança alimentar, provendo alimentos frescos, a preços acessíveis (...)”
Historicamente, temos observado uma dificuldade do
Estado Brasileiro no enfrentamento da fome. Embora tenhamos conquistado
direitos importantes, não se observou a inclusão de parcela significativa da
população, que permaneceu em estado de pobreza e vulnerabilidade, sem fazer
valer os direitos assegurados. Políticas públicas não foram capazes de resolver
as necessidades dessas famílias, e têm sido insuficientes ou desconsideradas.
É nesse contexto que verificamos a presença importante
da sociedade civil, tornando-se protagonista em ações no sentido de mudança
desse cenário, particularmente com relação ao combate à fome.
A Pastoral da Criança, na década de 1990, é indicada
como a mais bem sucedida iniciativa não-governamental no combate à desnutrição
e à fome infantil, atingindo mais de um milhão de famílias por mês e mais de
150 mil voluntários. Também a Ação da Cidadania contra a fome (1993) liderada
por Herbert de Souza, o Betinho, foi a que ganhou maior visibilidade, e
culminou com a criação do Consea, numa ação incisiva de fazer o Estado assumir
a responsabilidade sobre o problema.
Posteriormente, vamos observar a constituição de
diferentes modalidades de organizações não governamentais que assumem para si a
responsabilidade de lutar contra a fome, com a ideia de que esta não é apenas
uma questão do Estado, mas que a sociedade pode contribuir com soluções
adequadas.
A pandemia da infecção pelo sars-cov-2 em 2020 veio
encontrar um Brasil em franca crise política e socioeconômica, com os níveis de
insegurança alimentar aumentando desde 2017, majoritariamente por conta da
redução de investimentos relacionados às políticas sociais nos anos recentes. A
então chegada da covid-19 escancarou as desigualdades sociais e acentuou ainda
mais a insegurança alimentar no Brasil. A política fiscal de teto de gastos do
governo Michel Temer com retração em relação aos investimentos nos programas
que asseguram a segurança alimentar e desmonte de políticas públicas federais
acentuadas no governo Bolsonaro associados à diminuição de recursos para
populações em vulnerabilidade e a incompetência administrativa dos quadros federais
resultou numa das piores gestões da pandemia em âmbito mundial e culminou no
aumento brutal da insegurança alimentar.
Tantos desmontes resultaram na ausência de resposta, ou
respostas tardias para a fome durante a pandemia de covid-19 pelos órgãos
públicos. É quando se observa, uma mobilização rápida e articulação dos mais
variados setores da sociedade, nas mais variadas ações, para cuidar daqueles
mais desassistidos. Em abril de 2020, um mês após decretada a pandemia, a
plataforma PonteaPonte já contava com mais de 450 organizações da sociedade
civil com ações de enfrentamento à pandemia.
Em resposta ao desmantelamento do Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), à extinção do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), e às crescentes violações de
direitos socioambientais a sociedade civil criou a Conferência Popular Fórum
Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). Durante a
pandemia foi elaborado um manifesto de 150 movimentos/ organizações com um
conjunto de propostas de combate à fome a serem implementadas, em caráter
urgente e emergencial, pelos governos nas esferas federal, estadual e
municipal.
O setor empresarial e diversos segmentos de classes
médias urbanas organizaram inúmeras iniciativas de doação direta de recursos
financeiros, para fornecimento de alimentos, produtos de higiene e limpeza num
caráter filantrópico a comunidades ou moradores de rua. Por exemplo em São
Paulo, um grupo grande de pessoas, organizadas em volta da hoje instituída ONG
o Amor Agradece passou a cozinhar em suas próprias casas durante a pandemia,
distribuindo hoje cerca de 3.500 marmitas por semana, em 12 núcleos na cidade
de São Paulo e Guarulhos, além de cobertores e artigos de higiene pessoal.
Em todo o território nacional um sem-número de
iniciativas de auto-organização aconteceram em comunidades e bairros populares
nas periferias de centros urbanos, ampliando iniciativas já existentes, mas
constituindo um repertório de práticas inovadoras atualizadas. O exemplo de
organização da favela Paraisópolis, na zona Sul de São Paulo, onde
criatividade, solidariedade e decisões de lideranças locais em relação a
distribuição de alimentos e cuidados médicos contribuíram para que a
mortalidade nesta favela fosse a metade da mortalidade da cidade de São Paulo e
um quinto da mortalidade da região periférica da zona Norte, a Brasilândia.
No estado de São Paulo, diversas iniciativas promoveram
a aproximação entre a agricultura familiar agroecológica e comunidades
necessitadas. Na cidade de São Paulo, a Frente Alimenta, conectou agricultores,
inclusive urbanos, com cozinhas comunitárias da periferia fornecendo através de
doações de empresas e indivíduos alimentos frescos, ajuda na montagem das
cozinhas e formação de cozinheiras.
Situação semelhante acontece em Piracicaba com o
Movimento Tô Aqui, movimento de financiamento coletivo de produção
agroecológica, visando a insegurança alimentar na periferia da cidade, que
surgiu durante a pandemia da covid-19, devido ao agravamento de dois cenários:
agricultores familiares de base agroecológica, que encontraram dificuldades
para comercializar os alimentos produzidos; e nas periferias, famílias que
enfrentaram o agravamento da situação de vulnerabilidade. Envolve pessoas
físicas e jurídicas, que apoiam o movimento tanto como voluntários como
financeiramente.
Hortas urbanas têm um papel importante no combate à
insegurança alimentar, provendo alimentos frescos, a preços acessíveis. A Horta
da Faculdade de Medicina da USP tem doado semanalmente, durante a pandemia,
ervas, temperos e folhagens para associações que cozinham para moradores de rua
e atendem refugiados no centro da cidade de São Paulo, mostrando o potencial
produtivo destes pequenos locais na malha urbana.
Outra iniciativa especialmente interessante de conexão
entre comunidades, foi o Do quilombo para a favela, que surgiu entre as
populações quilombolas do Vale do Ribeira. Antes da pandemia, a Cooperativa dos
Quilombos do Vale do Ribeira – Cooperquivale, fornecia alimentos para as
escolas, por meio do PNAE, e também para prefeituras. Durante a pandemia a
Cooperquivale e parceiros criaram um plano emergencial de captação de recursos
para a distribuição de alimentos para famílias vulneráveis, que permitiu a
entrega de 20 toneladas de alimentos /mês para cinco municípios, entre eles a
favela San Remo, da periferia de SP.
Vale ressaltar o trabalho do Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra que doou desde o início da pandemia sete mil
toneladas de alimento em todo o Brasil, além da venda de alimentos a preço de
custo e doação de sementes, mostrando o papel fundamental que tem a agricultura
familiar na segurança alimentar no Brasil, em detrimento do modelo extensivo do
agronegócio.
Enfim, observa-se que as múltiplas iniciativas da
sociedade civil organizada em todo o país foram muito importantes para a
manutenção da segurança alimentar em comunidades desprovidas, exibindo alto
grau de solidariedade, criatividade e inovação social. Que tais iniciativas
possam ser entendidas e incorporadas por gestores públicos na construção de
políticas de inclusão e segurança alimentar a partir de então.
Jornal
da USP, Thais Mauad e Maria Elisa de Paula Eduardo Garavello
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