Pobreza afeta trabalhadores estrangeiros no Catar |
O Catar, que sedia o Mundial de 2022, se tornou conhecido como um dos países mais ricos do mundo, mas pouco se fala sobre a pobreza nessa pequena nação do Oriente Médio.
Esta é experimentada por
parte dos estrangeiros, que são 90% de sua população.
Em 1971, quando ganhou
independência do Reino Unido, o Catar tinha um PIB (Produto Interno Bruto, soma
de bens e serviços de um país) de cerca de US$ 400 milhões. Hoje, sua economia
gira em torno de US$ 180 bilhões, ou seja, um aumento de 45.000%.
Isso se deveu, principalmente,
pela descoberta do petróleo e gás natural — juntas, essas duas matérias-primas
respondem por mais da metade das receitas do país.
Com tanto dinheiro, a
pequena nação atraiu um número extraordinário de migrantes e pôde investir
maciçamente em infra-estrutura, com construções suntuosas em meio ao clima
desértico.
Também praticamente
"eliminou" a pobreza — pelo menos, conforme as estatísticas oficiais.
Mas, na verdade, esses dados
mascaram um problema profundo na sociedade catariana.
O Catar tem hoje cerca de 3
milhões de habitantes. Mas, desse total, apenas 350 mil (cerca de 10% da
população) são catarianos — o restante é estrangeiro.
No entanto, nativos e
estrangeiros que vivem no Catar não são tratados da mesma forma aos olhos do
Estado.
Quem é cidadão do país tem
direito a uma série de benefícios sociais, como acesso gratuito ao sistema de
saúde, auxílio-moradia e auxílio-transporte.
Não é de se surpreender,
portanto, que nesse grupo não haja pobres.
E, como as estatísticas
oficiais são normalmente baseadas apenas na renda dos catarianos, a imagem de
um país livre da pobreza percorreu o mundo.
Mas essa é apenas uma
ilusão.
Os estrangeiros, que
compreendem a imensa maioria da população, muitos dos quais de Bangladesh,
Índia, Nepal e Paquistão, vivem outra realidade.
Esses migrantes, que
deixaram seus países de origem para escapar da pobreza e alcançar estabilidade
financeira para si e suas famílias, têm que aceitar salários muito mais baixos,
além de condições de trabalho precárias.
Milhares de trabalhadores
estrangeiros morreram, por exemplo, na construção dos estádios e da infraestrutura
desde que o país foi escolhido para sediar a Copa do Mundo.
Tratamento desigual
Para se ter uma ideia, um
trabalhador migrante da área de construção ganha cerca de US$ 2 mil anuais. Já
os cidadãos do Catar têm um salário médio de cerca de US$ 700 mil por ano.
Perante a lei, os
estrangeiros tampouco são tratados de forma igual aos nativos.
Até bem pouco tempo,
vigorava o kafala (sistema de patrocínio, em árabe) pelo qual os trabalhadores
migrantes não podiam deixar o país ou mudar de emprego sem a permissão do
empregador.
Se eles mudassem de emprego
sem essa autorização, enfrentavam acusações criminais por "fuga", o
que podia levar à prisão, detenção e deportação.
Empregadores do Catar também
eram conhecidos por confiscar os passaportes dos empregados, mantendo-os no
país indefinidamente e gerando muitas alegações de trabalho forçado.
Em dezembro de 2016, o Catar
aprovou uma lei que permitiu a trabalhadores que tivessem concluído seus
contratos a mudar de emprego livremente e impôs multas às empresas que
confiscavam os passaportes dos funcionários.
Mas a retenção do documento
ainda era possível legalmente, caso houvesse um consentimento por escrito — uma
realidade para muitos trabalhadores.
Outro obstáculo para quase
todos os migrantes no Catar envolvia os custos iniciais de recrutamento que os
trabalhadores normalmente pagavam aos recrutadores antes de se mudarem para o
país.
Era praxe pagar uma quantia
substancial, que variava entre US$ 500 e US$ 3.500, antes de deixar seus países
de origem para conseguir um emprego.
Isso significava, na
prática, que a grande maioria desses migrantes tinha que contrair empréstimos
com taxas de juros variadas para pagar esses custos de recrutamento,
deixando-os numa posição ainda mais vulnerável.
Importante lembrar que,
diferentemente do Brasil, onde basta nascer em território nacional para ser
cidadão brasileiro, só é catariano quem tem pai catariano. Se a mãe for
catariana e o pai estrangeiro, o filho não tem nacionalidade catariana.
É pouco provável, portanto,
obter cidadania do país sendo estrangeiro — isso é legalmente possível, mas
depende de uma série de exigências, entre as quais residência legal contínua
por 25 anos, ter excelente "reputação e caráter" e conhecimento
prático da língua árabe, entre outras.
Finalmente, em 2020, sob
pressão internacional e ameaçado de perder o direito de realizar o Mundial, o
Catar se tornou o primeiro país árabe a abolir o sistema kafala, possibilitando
que trabalhadores migrantes mudassem de emprego sem a permissão do empregador.
Também estabeleceu um
salário mínimo para todos os trabalhadores, independentemente da nacionalidade,
a segunda nação do mundo árabe a fazer isso, após o Kuwait.
As mudanças também
envolveram os trabalhadores migrantes excluídos das proteções da lei
trabalhista, como trabalhadores domésticos.
No entanto, outras
disposições legais que facilitam o abuso e a exploração de trabalhadores
migrantes permaneceram.
Segundo a ONG Human Rights
Watch, "os trabalhadores migrantes — e seus dependentes — ainda devem
contar com seus empregadores para facilitar a entrada, residência e emprego no país,
o que significa que os empregadores são responsáveis por solicitar, renovar e
cancelar suas autorizações de residência e trabalho".
"Os trabalhadores podem
ficar sem documentos sem que tenham culpa por isso quando os empregadores
falham em realizar tais processos, e são eles, não seus empregadores, que
sofrem as consequências", disse a HRW em relatório publicado em 2020.
"O Catar continua a
impor penalidades severas por "fuga" — quando um trabalhador migrante
deixa seu empregador sem permissão ou permanece no país além do período de
carência permitido depois que sua permissão de residência expira ou é revogada.
As penalidades incluem multas, detenção, deportação e proibição de
reentrada", acrescentou.
No ano passado, a HRW
apontou que os trabalhadores estrangeiros ainda sofrem com "deduções
salariais punitivas e ilegais" e enfrentam "meses de salários não
pagos por longas horas de trabalho extenuante".
E, segundo a ONG Anistia
Internacional, as empresas ainda pressionam os trabalhadores para impedi-los de
trocar de empregador.
Um porta-voz do governo do
Catar disse à BBC que as reformas implementadas pelo país estão melhorando as
condições de trabalho da maioria dos trabalhadores estrangeiros.
"Foi feito um progresso
significativo para garantir que as reformas sejam efetivamente aplicadas",
disse o porta-voz.
"O número de empresas
que quebram as regras continuará diminuindo à medida que as medidas de
fiscalização forem implementadas", acrescentou ele.
Copa do Mundo
Para a Copa do Mundo, o
Catar construiu sete estádios, além de um novo aeroporto, sistema de metrô, uma
série de estradas e cerca de 100 novos hotéis.
Uma cidade inteira foi
construída em torno do estádio que sediará a partida final.
O governo do Catar diz que
30 mil trabalhadores estrangeiros foram contratados apenas para construir os
estádios. A maioria vem de Bangladesh, Índia, Nepal e Filipinas.
Segundo o jornal britânico
The Guardian, 6.500 trabalhadores migrantes da Índia, Paquistão, Nepal,
Bangladesh e Sri Lanka morreram no Catar desde que o país foi escolhido para
sediar o Mundial.
Esse número é baseado em
dados fornecidos pelas embaixadas dos países no Catar.
No entanto, o governo
catariano disse que essa cifra é enganosa, porque nem todas as mortes
registradas eram de pessoas que trabalhavam em projetos relacionados à Copa do
Mundo.
E acrescentou que muitos dos
que morreram trabalharam no Catar por vários anos e podem ter morrido de
velhice ou outras causas naturais.
O governo catariano informou
que seus registros de acidentes mostraram que, entre 2014 e 2020, houve 37
mortes de trabalhadores nas obras de construção de estádios da Copa do Mundo,
apenas três das quais foram "relacionadas ao trabalho".
No entanto, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) diz que esse número é subestimado. O Catar não
contabiliza as mortes por ataques cardíacos e insuficiência respiratória como
relacionadas ao trabalho — embora esses sejam sintomas comuns de insolação,
causados por trabalhos pesados em temperaturas muito altas.
A organização compilou seus
próprios números para incidentes relacionados à Copa do Mundo, coletados de
hospitais públicos e serviços de ambulância no Catar.
Segundo a OIT, 50
trabalhadores estrangeiros morreram e mais de 500 ficaram gravemente feridos
apenas em 2021, enquanto outros 37.600 sofreram ferimentos leves a moderados.
O serviço árabe da BBC
também reuniu evidências apontando que o governo do Catar subestimou as mortes
entre trabalhadores estrangeiros.
BBC News
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