Em 1946, ano em que Josué de Castro
publicou Geografia da fome: a fome no Brasil, o Brasil tinha 1,9 milhão de
imóveis rurais, cultivava 195 milhões de hectares e 69% dos aproximadamente 50
milhões de brasileiros viviam em áreas rurais. Atualmente a agropecuária
brasileira ocupa 5,5 milhões de imóveis rurais, cultiva 350 milhões de hectares
e menos de 15% da população de 212 milhões de brasileiros vivem em áreas
rurais.
Em 1946 Castro descreveu um país de famintos e
subnutridos, deficitário na produção de alimentos, com uma agricultura pouco
desenvolvida em muitos sentidos, ancorada em poucos produtos visando exportação
e com pouca adoção de tecnologias produtivas, mesmo daquelas disponíveis à
época. O latifúndio improdutivo era característico em todas as regiões e
marcante da estrutura agrária. A agricultura absorvia mais da metade da
população economicamente ativa. A produção era diversificada, com ampla
variedade de produtos agropecuários produzidos em pequena escala e em
quantidade insuficiente para atender ao mercado doméstico, com elevada
concentração na pauta de exportações da época: açúcar, café, algodão, borracha
e cacau. Em 1946, os fundamentos de uma grande mudança, daquilo que no futuro
foi chamado de “Revolução Verde”, foram ganhando forma na reorganização
geopolítica e econômica mundial do pós-guerra: a fome e a ocupação da maioria
dos trabalhadores no campo teriam que desaparecer.
Nas décadas seguintes, o processo de concentração da
produção se acentuou ao mesmo tempo em que, nos movimentos pós-1964, o governo
desenvolveu uma série de reformas denominadas de modernização conservadora,
que, apesar de incluir em alguma medida projetos de colonização de novos
territórios por agricultores pobres sem-terra, manteve intacta a estrutura
altamente concentrada de domínio da terra e do poder político. Em meados da
década de 1960, diversas medidas estrategicamente alinhadas e altos investimentos
públicos impulsionaram a implementação das tecnologias associadas à Revolução
Verde, visando, principalmente, à geração de excedentes exportáveis. As medidas
envolveram a ampla oferta de crédito, a criação de um sistema de subsídios
compensatórios e de proteção agrícola (Política de Garantia de Preços Mínimos),
a formação e administração de estoques reguladores e a ampliação das indústrias
processadoras, como a de soja e de suco de laranja, por exemplo.
No início da década de 1970 os investimentos públicos
avançam sobre a área tecnológica, com a criação da Embrapa em 1973 e do
Proálcool em 1975, resultando, até o final da década de 1970, em importantes
aumentos de produtividade e expansão da fronteira agrícola nas áreas já
consolidadas e em novas geografias (Centro-Oeste). As décadas de 1980 e 1990
são marcadas por políticas recessivas e processo inflacionário que restringiram
o desenvolvimento em geral, e da agricultura em específico. Nessa época, as
políticas mais marcantes foram os estímulos às exportações agrícolas. Políticas
diferenciadas e incentivos foram estabelecidos para os produtos destinados ao
mercado externo como café, açúcar, soja, suco de laranja, cacau, algodão e
tabaco.
A partir do início dos anos de 1990 houve a progressiva
eliminação de restrições às importações de produtos agrícolas, reduções e
simplificações tarifárias. Como resposta, a produção doméstica se tornou mais
competitiva no cenário global e a aquisição de insumos e máquinas agrícolas a
preços do mercado internacional trouxe novo impulso tecnológico para a
produção. A criação da Organização Mundial do Comércio (1993), o acentuado
processo de globalização, a redução do papel controlador do Estado e a menor
disponibilidade de recursos públicos beneficiaram os produtores maiores e
aqueles com maior familiaridade com as novas tecnologias da Revolução Verde, ao
mesmo tempo que os grandes grupos multinacionais expandiam suas operações no
Brasil. Os anos 2000 se iniciam com o boom das commodities, influenciado pela
rápida expansão da economia chinesa. Ao longo dos anos 2000, o Brasil consolida
sua posição como protagonista global do agronegócio e se torna peça-chave no
atendimento da demanda crescente de alimentos, bioenergia, celulose e outros
produtos agropecuários.
O sucesso global do setor agropecuário brasileiro é
multifatorial. Por um lado, na raiz do sucesso, estão sem dúvida os ganhos
crescentes de eficiência encampados por uma mentalidade empreendedora de um
conjunto de produtores rurais que souberam, a partir de um conteúdo
tecno-científico adaptado às condições tropicais, transformar terra, trabalho e
capital em commodities de demanda altamente crescente. Por outro lado,
diferentes formas de pensamento questionam se benefícios legais, tributários e
mercadológicos estariam efetivamente integrados ao sucesso no ambiente rural de
forma socialmente aceitável. Assim, teriam as empresas rurais se beneficiado de
baixas tributações, subsídios governamentais e ausência de fiscalização
territorial? Ou seria o sucesso atribuído ao fato de uma maior eficiência no
uso da terra, a partir de uma maior produtividade por área, usufruindo de
aspectos legais e tributários já existentes?
A trajetória que liga 1946 a 2022 fincou uma cunha no
agora chamado “agronegócio brasileiro”. Por um lado, as atividades agrícolas e
aqueles que as executam, que eficientemente incorporaram as tecnologias
associadas aos princípios da Revolução Verde e ganharam escala de forma
consistente e crescente, concentraram a produção. Mas, independentemente do perfil
do produtor – agricultor familiar, médio ou grande -, do produto – agrícola,
alimento, ração, fibra, celulose, exportação ou mercado interno -, ou da região
em que se concentram os cultivos, quem incorporou tecnologias de forma mais
eficiente, concentrou a produção e os meios de sua obtenção – terras, crédito e
outros recursos produtivos. Os fatores que levam à maior ou menor incorporação
deste tipo específico de tecnologia são múltiplos e complexos. Envolvem as
ênfases temáticas e o perfil dos processos de P&D&i, que são
compartilhados por interesses, instituições e recursos tanto públicos como
privados; as infraestruturas locais e regionais disponibilizadas como apoio à
produção; as políticas públicas e privadas de crédito em termos de focalização
de produtor, geografia de atuação e setores atendidos; as ênfases e os agentes
públicos e privados que fornecem assistência técnica e extensão rural; o
recorte temático dos currículos de formação acadêmica e técnica dos
profissionais agrários, apenas para iniciar uma lista que é bem maior do que os
exemplos aqui colocados.
Do outro lado desta cunha estão aqueles que ao longo
desta trajetória não incorporaram este tipo específico de tecnologia. Nestes,
observamos o processo de fragmentação da propriedade, geralmente em eventos
sucessionais, e sua gradativa desativação produtiva, que não é exclusivo, mas
afeta principalmente os pequenos produtores. Os efeitos sociais e ambientais
deste processo certamente serão muito maiores do que seu efeito sobre a safra e
protagonismo mundial do Brasil como expoente do agro mundial. Quando alguém
deixa de produzir, outro produtor, outro produto, outra região, outra
tecnologia produtiva assumem seu lugar.
A trajetória que liga 1946 a 2022 consolidou a produção
nas áreas já ocupadas aumentando de forma importante sua produtividade, mas
também, de forma contínua e persistente, expandiu a produção sobre novas
fronteiras. Primeiro sobre os Cerrados da região Centro-Oeste, depois as
chapadas do Cerrado nordestino (Matopiba) e atualmente sobre o sul amazônico
(Amacro). A expansão ocorreu, e continua ocorrendo, em parte, pela apropriação
de terras públicas (grilagem), desmatamento ilegal com a exploração dos
recursos florestais seguida do estabelecimento inicial de pecuária de corte extensiva.
A valorização das terras, mesmo daquelas griladas ou desmatadas ilegalmente, a
ineficácia da presença do Estado nas regiões de fronteira e pós-fronteira em
assegurar o cumprimento legal e a defesa dos interesses coletivos e a crescente
presença de organizações criminosas organizadas nas fronteiras tornam este
quadro cada vez mais dramático.
O Brasil chega a 2022 com um imenso setor agropecuário,
múltiplo, complexo e diversificado. Estratégico para a segurança alimentar do
planeta num país em que a fome voltou a assombrar entre 9% e 15% dos seus 212
milhões de habitantes, dependendo de quem e como esta terrível realidade é
avaliada. Um setor que respondeu de forma eficiente, tanto no âmbito público
como no privado, às inovações tecnológicas ofertadas pela Revolução Verde,
concentrando a maior parte da produção e atividades em quem se especializou. A
forma operante dessas propriedades vem sendo usada como modelo para muitas
regiões que aspiram o progresso de sua produção agrícola e a fonte de preocupação
dos países que concorrem com o Brasil no agro mundial. No resíduo deste
processo vemos a desativação ou estagnação produtiva da maioria que, por uma
razão ou outra, não incorporou este tipo específico de tecnologia, perpetuando,
assim, as desigualdades e a concentração de pobreza no campo.
A constante e predominante análise deste enorme e
complexo setor através de filtros ideológicos, simplificações, visões parciais
ou unilaterais não é um terreno fértil para seu desenvolvimento sustentável em
sentido amplo. A sustentabilidade decorre de um processo em que as escolhas
consideraram as melhores possibilidades de contribuir para uma sociedade plural
e fundamentada em princípios igualitários, a promoção de benefícios para a
natureza, e o respeito ao próximo. A ciência tem um papel fundamental em descrever
e entender os efeitos do setor agropecuário brasileiro, e ajudar a orientar as
escolhas daqueles que podem e estão guiando seu caminho. Um esforço feito,
necessariamente, num ambiente colaborativo e de cocriação entre ciência,
gestores públicos e privados, representantes dos grupos de interesse envolvidos
e afetados pelas decisões.
O eixo de Agricultura e Pecuária do Programa de Eixos
temáticos da USP faz parte das iniciativas de organização do conhecimento
científico com este objetivo, semeado em terreno fértil, por estar inserido num
grupo maior de outros dez eixos temáticos, ampliando o escopo da análise para
uma visão transdisciplinar e transetorial necessária para o pleno entendimento
da abrangência e complexidade envolvidas.
Jornal da USP, Gerd Sparovek, Francisco Palma
Rennó, Augusto Hauber Gameiro, Rafael Araújo Nacimento e Vanessa Theodoro
Rezende
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