Presidente do Google.org,
braço de filantropia do gigante de tecnologia, a americana Jacquelline Fuller
explica por que acredita no terceiro setor
A americana Jacquelline Fuller é uma otimista
quanto ao papel da filantropia para resolver problemas sociais causados pela
pandemia, como o fechamento de escolas e a falta de crédito para as pequenas e
médias empresas.
Com mestrado em políticas públicas pela Universidade Harvard, nos Estados
Unidos, Jacquelline é presidente global do Google.org, braço de filantropia do
gigante de tecnologia com atuação espalhada pelo mundo.
No Brasil, desde o começo do ano o Google.org tem dado mentoria a
empreendedoras mulheres numa parceria com a ONG Rede Mulher Empreendedora. Em
outra frente, com a Fundação Lemann, a organização colaborou para digitalizar
conteúdos de escolas públicas — e, assim, reduzir os percalços causados pelo
fechamento das salas de aula.
Na entrevista a seguir, concedida de sua casa, em São Francisco, na Califórnia,
Jacquelline explica por que vê potencial na filantropia feita no Brasil e quais
serão os desafios para o terceiro setor num futuro pós-pandemia.
Nos últimos meses, muitas empresas no Brasil doaram recursos para o combate à
covid-19. Ao mesmo tempo, há quem diga que a cultura de doação ainda é muito
fraca no Brasil. Como estrangeira com experiência em filantropia, e com
conhecimento de Brasil, a senhora concorda?
Quando se fala em doar algo, há a doação formal e a informal. Uma das coisas
com que fiquei mais impressionada nas vezes em que estive no Brasil foi a
solidariedade entre os brasileiros. É normal uma pessoa ajudar um familiar com
algum recurso para terminar a faculdade, por exemplo. Ou então doar seu tempo
para cuidar de um vizinho que esteja passando por uma situação difícil. Eles
podem nem chamar isso de filantropia, um conceito associado à doação de
recursos financeiros a organizações não governamentais [ONGs], mas me parece
que faz parte da cultura brasileira ajudar as pessoas ao redor, como entes
queridos. Há uma economia informal da doação no Brasil que pode, ou não, se
traduzir em doação de recursos financeiros a ONGs.
Como essa solidariedade pode ser escalada para, de fato, virar uma estratégia
eficiente contra os problemas sociais do Brasil?No escritório do Google no
Brasil, perto de 30% dos funcionários estão envolvidos em alguma atividade
voluntária. É um dos índices mais elevados de comprometimento com voluntariado
entre os escritórios do Google espalhados pelo mundo. Por causa disso, estive
no Brasil pelo menos duas vezes e o Google.org tem raízes profundas no país.
Nosso Desafio de Impacto [premiação em dinheiro a iniciativas do terceiro setor
ao redor do mundo] já teve duas edições locais no Brasil. Durante a epidemia de
zika vírus [em 2015], fizemos uma parceria com o Unicef [braço das Nações
Unidas para políticas para a infância]. Os engenheiros do Google trabalharam
com ONGs locais para criar ferramentas que ampliassem o alcance dos dados sobre
como o vírus estava se espalhando. O espírito de solidariedade pode facilitar a
articulação de redes de voluntários interessados em resolver um problema. Temos
um histórico de fazer muitas parcerias de sucesso no Brasil.
De que maneira o Brasil pode elevar a cultura de doação de recursos à
filantropia?No Google, oferecemos um incentivo aos funcionários dispostos a
financiar ONGs. Queremos encorajar quem tem uma causa ou uma instituição de
caridade favorita a fazer isso com o dinheiro de seu salário. A cada dólar
doado do dinheiro de seu salário, nós doamos 1 dólar até o limite de 10.000
dólares por ano.
Essa estrutura funciona no Google, mas como ampliar a cultura de doação de uma
sociedade? Especialistas em filantropia recomendam ao Brasil adotar incentivos
fiscais, como os que existem nos Estados Unidos. É o caminho?Não
necessariamente. Muitas vezes as pessoas querem doar, têm recursos disponíveis,
mas não sabem a quem doar nem como fazer isso de uma maneira eficiente. Falta
comunicação. No Google realmente acreditamos que alguns dos melhores trabalhos
em andamento contra os desafios da humanidade são liderados por ONGs, que não
raro estão trabalhando na obscuridade. Por essa razão, queremos dar
visibilidade a elas. Uma de nossas iniciativas, o Desafio de Impacto, serve
para mobilizar nossa marca e nosso marketing para dar visibilidade aos
vencedores para poderem contar suas histórias e inspirar outras. As pessoas
estão dispostas a arregaçar as mangas, a ser ativas em suas comunidades.
A pandemia vai mudar o papel da filantropia?Para ser honesta, acho que ainda
estamos todos nos olhando e perguntando “como a covid vai mudar o mundo?” ou
então “por quanto tempo a pandemia ainda vai perdurar?” Em 2020, investimos 100
milhões de dólares em iniciativas para combater os efeitos da pandemia, uma
quantia bem acima do previsto inicialmente neste ano. Esses problemas estarão
no foco das atenções do Google.org pelo menos nos próximos dois anos.
A senhora mencionou que os efeitos da covid-19 serão sentidos por um longo
tempo. Quais áreas de atuação da filantropia devem crescer nos próximos anos
por causa dos desafios abertos com a pandemia?Por causa da pandemia, há mais de
1 bilhão de estudantes fora das salas de aula pelo mundo. O Google, como
empresa de tecnologia, tem algo a oferecer para resolver o problema. E, junto
com a Fundação Lemann, estamos colocando tecnologias como Google for Education
[plataforma de educação à distância] a serviço de governos do Brasil para
oferecer conteúdo online a alunos afastados das salas de aula. Estamos pensando
no longo prazo em um ambiente de educação que possa democratizar o acesso à
educação. É interessante, porque nosso trabalho em educação, mesmo
antes da pandemia, era focado em ajudar professores a ensinar pela internet e a
compartilhar coisas como os planos de aula pela internet. Creio que criamos
algo como 6.000 planos de aula, hoje disponíveis de graça na internet. Esse tipo
de aprendizado compartilhado tornou-se ainda mais importante agora que estamos
na pandemia, não só no Brasil mas globalmente.
A pandemia acelerou problemas sociais preexistentes?Sim. Temos visto que muitos
dos problemas anteriores à covid-19 estão sendo ampliados. Já víamos um
descompasso cada vez maior no mercado de trabalho. Determinados grupos
demográficos, como mulheres, afrodescendentes, integrantes da comunidade
LGBTQ+, estavam marginalizados do mercado de trabalho em virtude da
falta de acesso à qualificação. Esse problema deve se acentuar agora. Por essa
razão, mais do que nunca, há necessidade de garantir que esses grupos tenham
treinamento e acesso a capital para, por exemplo, começar um negócio. Se não
fizermos isso, as lacunas continuarão a aumentar.
Vai ser possível resolver essas lacunas só com filantropia?Uma pergunta
interessante a fazer neste momento é: como podemos aproveitar os desafios
abertos pela pandemia de covid para fazer o impacto da filantropia chegar a
mais pessoas — e multiplicar seus resultados? Um exemplo: até então uma pessoa
desempregada ia até um centro de treinamento presencial para ajustar o
currículo e receber treinamento em habilidades digitais, como aulas de
informática, com uma pessoa ensinando às demais. Agora, com a pandemia, estamos
investindo em soluções virtuais com nossos parceiros em educação para facilitar
o treinamento de habilidades digitais. Como a pandemia está forçando uma
corrida para a digitalização de atividades até então feitas presencialmente, há
espaço para as iniciativas da filantropia ganharem escala.
O papel de garantir oportunidades aos cidadãos historicamente ficou com o
Estado. A filantropia vai ocupar o espaço dos governos?A maior parte das
políticas para a recuperação da economia global sairá dos governos. O mercado,
por sua vez, vai ser o principal veículo por meio do qual as pessoas vão
conseguir realizar sonhos, como construir uma carreira, ou acessar bens, como
ter a própria moradia. A filantropia pode combinar coisas do governo e dos mercados
para encontrar saídas para desafios que nem um nem outro têm condições de fazer
porque são mais lentos e conservadores no uso do dinheiro — e tendem a investir
naquilo com resultados comprovados. A filantropia pode fornecer o capital de
risco para ideias que podem ou não ter sucesso.
Que tipo de ideia pode ser considerada de risco num momento desses?Fala-se
muito sobre os impactos da covid-19 na saúde e na educação, mas também há a
devastação econômica resultante da necessidade de isolamento social. Negócios
liderados por mulheres, pequenas e médias empresas foram desproporcionalmente
atingidos pela devastação econômica que veio da pandemia. Desde o começo do
ano, estamos dando mentoria em gestão de negócios a mais de 50.000 mulheres
donas de pequenas e médias empresas no Brasil, numa parceria com a ONG Rede
Mulher Empreendedora. Equipes do Google têm dado coaching para ajudar essas
empreendedoras a acessar linhas de capital melhores para a expansão de suas
empresas. Nossa esperança é que, ao fornecer esses recursos, possamos alcançar
mais de 6.000 pequenas e médias empresas.
Antes mesmo da pandemia, as grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos
já eram alvo de críticas por causa de sua influência crescente nos governos.
Nessa visão, os governos estão enfraquecidos diante de empresas de tecnologia
com bolsos cheios de recursos — inclusive para financiar a filantropia —, o que
com o tempo poderia, inclusive, minar a democracia. Como a senhora avalia essas
críticas?Os desafios de que estamos falando, como educar 1 bilhão de crianças
fora das salas de aula por causa da covid-19, ou como usar a inteligência
artificial para rastrear os passos da covid-19, ou mesmo como podemos ajudar na
recuperação da economia mundial, tudo isso vai demandar um esforço de toda a
sociedade. Queremos que a filantropia também esteja na mesa para fazer sua
parte. Queremos que nós, como indivíduos, possamos doar recursos ou nossos
conhecimentos para fazer a sociedade funcionar. Além disso, é razoável esperar
que as empresas venham à mesa e ajudem a contribuir para a sociedade local.
Enxergamos nosso trabalho no Google.org como uma extensão de ser um
bom cidadão.
Por Leo Branco, na Revista Exame
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