Em vez de punição, tentar reparar o mal causado: um caso no Paraná vira referência para a aplicação da Justiça restaurativa no Brasil. A sentença foi inspirada pela literatura: "Os miseráveis", de Victor Hugo.
Com citação de trechos de Os
miseráveis, de Victor Hugo, e paralelos entre Jean Valjean, o protagonista do
clássico escrito em 1862, e o autor de um roubo de dois aparelhos celulares,
uma sentença judicial proferida em Curitiba, em maio, tem sido apontada por
profissionais do direito como um divisor de águas da Justiça restaurativa no
Brasil.
A juíza Danielle Nogueira
Mota Comar, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), absolveu o réu e julgou
improcedente a ação penal. Só que o caminho para se chegar a tal desfecho foi
longo. Em abril de 2016, na garupa de uma motocicleta, C. roubou os celulares
de duas jovens nas ruas de Curitiba. Usou um simulacro de arma de fogo (um
revólver de brinquedo) para ameaçá-las.
Ele e o motorista da moto,
hoje falecido, foram presos logo na esquina, em flagrante. Os celulares,
avaliados em R$ 2 mil, foram devolvidos às vítimas na ocasião. O agente do
delito ficou cinco dias preso e depois foi formalmente iniciado o processo
judicial. Ele não tinha nenhum antecedente criminal.
Após uma série de audiências
da prática restaurativa, conduzidas pelo Núcleo de Prática e Incentivo à
Autocomposição (Nupia), do Ministério Público do Paraná, o autor do roubo fez
um acordo com as vítimas: hoje entrega pizzas, duas vezes por mês, para as
jovens. Elas, adolescentes à época do crime, escolhem os sabores.
Também foi parte do acordo
restaurativo a entrega de uma cesta básica mensal, no valor de R$ 100, para a
Igreja Pentecostal Deus é Santo. Após o delito, arrependido, ele se tornou
evangélico e procurou as vítimas para pedir perdão. O ato de arrependimento
ocorreu bem antes do início da prática restaurativa.
A introdução de pizzas no
acordo não ocorreu ao acaso: o autor do delito é pizzaiolo, ganha R$ 1.300 por
mês. Pai de quatro filhos, ele paga aluguel. Aos prantos na audiência de
instrução, antes de ser iniciada a fase de sentença do julgamento, ele alegou
que roubou porque estava desesperado, com dificuldades financeiras, e precisava
comprar fraldas para o filho mais novo.
A juíza percebeu na ocasião,
conforme relata na própria sentença, que "era evidente a possibilidade de
diálogo entre as partes". E foi então que procurou o auxílio do Nupia para
iniciar a prática restaurativa e tentar dar um desfecho totalmente distinto ao caso.
As audiências começaram antes da pandemia e tiveram que seguir virtualmente ao
longo de 2020.
O caso é paradigmático por
ter resultado em absolvição numa ação penal, e ainda de roubo qualificado. A
pena prevista para esses casos é de reclusão de quatro a dez anos, e multa, de
acordo com o Artigo 157 do Código Penal. Se há participação de dois ou mais
indivíduos no roubo, a pena é majorada. Ainda que a Justiça restaurativa patine
no Brasil, que possui a terceira maior população carcerária do mundo, ela tem
sido aplicada com êxito em casos pontuais, mas é raro ver sua aplicação em
ações penais e menos ainda absolvição.
Justiça baseada na
responsabilização
"Se não houvesse a
prática restaurativa, muito provavelmente ele seria condenado. Talvez não
chegasse à pena em regime fechado, talvez fosse semi-aberto. Mas ele teria uma
condenação, deixaria de ser réu primário. A prática restaurativa fez toda a
diferença neste caso", afirmou a procuradora de Justiça Samia Saad
Gallotti Bonavides, coordenadora do Nupia e também subprocuradora-geral de
Justiça para Assuntos de Planejamento Institucional do Ministério Público do
Paraná.
Segundo Samia Bonavides, a
adoção da Justiça restaurativa para casos criminais é incomum. "As pessoas
têm dificuldade [de aceitar] e chegam a questionar se está dentro da legalidade
trabalhar com Justiça restaurativa no crime. Nós estamos dizendo que sim, que
há legalidade. Desde que as pessoas envolvidas na situação admitam,
voluntariamente, iniciar uma prática restaurativa. Foi o que aconteceu neste
caso."
Promotor de Justiça
responsável pela condução do caso, Willian Lira de Souza, do Nupia, conta que o
processo estava chegando à fase de alegações finais, pronto para a sentença,
quando a juíza pensou na prática restaurativa. Ele explica que nenhuma vantagem
processual pode ser prometida ao autor do fato, na Justiça restaurativa.
"Desde o início, ficou
muito claro para o autor do fato que, se quisesse participar do processo
restaurativo, deveria fazê-lo sem contar que poderia ser absolvido, ter pena
menor ou cumprir pena em regime mais brando do que o tradicional. Ele poderia
ter algum benefício dependendo da avaliação do promotor e do juiz, mas não era
uma garantia. Também foi avisado isso às vítimas, de que não estávamos dando
nenhum benefício ao autor, mas ele poderia ser beneficiado se a prática fosse
bem sucedida e principalmente cumprida", relata Souza.
A responsabilização pela
conduta, enfatiza o promotor, é um dos pilares da Justiça restaurativa.
"Ou seja, ele tem que assumir sua parcela de responsabilidade. Autor e
vítima precisam estar de acordo com o que aconteceu. Isso é um elemento
importante porque, na Justiça tradicional, não vale a pena assumir
responsabilidades pelo que foi feito. Adota-se, quase sempre, uma estratégia de
fuga, de defesa."
Criadora e coordenadora do
Nupia, Samia Bonavides pontua que a Justiça restaurativa não é insignificante
no Brasil e tampouco no mundo, mas exige uma profunda mudança cultural. A
Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda a aplicação da Justiça
restaurativa e definiu os princípios para sua aplicação desde 2012.
Cerca de 64 países trabalham
com a prática atualmente, diz a procuradora, sendo a Nova Zelândia uma
referência global. No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou
a Justiça restaurativa em 2016, com a Resolução 225. Nela, o CNJ reconhece o
direito das partes de acesso à Justiça restaurativa, "soluções efetivas de
conflitos por intermédio de uma ordem jurídica justa e compreende o uso de
meios consensuais, voluntários e mais adequados a alcançar a pacificação de
disputa".
Em paz consigo mesmo
O sistema judiciário
brasileiro, na opinião do promotor Willian Souza, não está fechado para a
Justiça restaurativa, mas é preciso enxergar as brechas e oportunidades para
que ela seja aplicada. "Toda pessoa tem necessidade de ficar em paz
consigo mesma. O rapaz já tinha procurado as vítimas para pedir perdão. O roubo
o incomodava. Na minha carreira, vejo que isso incomoda a todos os réus. Mas
eles não tem como extravasar." No sistema tradicional, enfatiza o
promotor, encarar a responsabilidade pelo crime de frente não traz nenhum
benefício ao réu.
"A nossa Constituição
prega a autocomposição, a solução pacífica de controvérsias. Nosso sistema
processual penal está há muito tempo exigindo uma revisão. Regulamentações do
CNJ e do CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] estão redirecionando a
atuação de promotores e juízes para a autocomposição. Justiça restaurativa é um
meio de autocomposição, uma possibilidade concreta e objetiva de pactuação com
o autor do fato. É uma tendência. Mas no Brasil ainda são diretrizes",
reflete o promotor.
Relatório do CNJ publicado
em 2021 informava o processo de instalação de Núcleos de Justiça restaurativa
em dez tribunais do país: AC, AL, AP, CE, PB, PI, RN, RO, RR e TRF-3 (MS e SP).
A obra e a realidade
Jean Valjean, o personagem
de Victor Hugo, furtou um pão para alimentar sua família faminta. Sem
antecedentes criminais, foi condenado a cinco anos de prisão. Por ter tentado
fugir do cárcere, a pena subiu para 14 anos, por mau comportamento. Voltou a
praticar o furto, cuja vítima foi um bispo, mas acabou perdoado quando, então,
"resgata sua alma" e reconstrói a vida. A juíza do TJ-PR vê uma interseção entre a obra do século 19 Os
miseráveis e o crime em Curitiba.
"De qualquer sorte, o
ora réu e Jean Valjean possuem pontos em comum: a vontade de mudar, a
autorresponsabilização (qual a minha responsabilidade comigo e com o outro), o
autoconhecimento e o sofrimento causado pelo rótulo do estereótipo social. A
ora vítima e o Bispo também possuem pontos em comum: a necessidade de seguir em
frente, de transformar o trauma em uma experiência de vida, de virar a página e
eventualmente de perdoar", declarou na sentença.
Para a magistrada, a Justiça
restaurativa pode transformar as relações e a convivência humana. "O
presente caso é um exemplo vivo de como a Justiça restaurativa pode ser
instrumento de mudança, não só dos envolvidos diretamente no fato, como também
da comunidade que os circunda e também de todos os intervenientes do processo
penal, revelando uma possibilidade de resolver o conflito penal com outra
abordagem diversa de uma saga punitivista que inflige dor."
DW, Malu Delgado
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