Exterminador do futuro
“(...) a agência
da ONU para a infância denunciou a perda de habilidades básicas de aritmética e
alfabetização: 'Além da perda de aprendizado, o fechamento das escolas afetou a
saúde mental das crianças, reduziu seu acesso a uma fonte regular de nutrição e
aumentou o risco de abuso' (...)”.
A pandemia da Covid-19
aprofundou a crise na educação, mas não a forjou. Escancarou a tragédia de uma
área negligenciada por um governo incompetente e mal-intencionado. Não é por
boa-fé que um presidente da República, em três anos de mandato, conta quatro
ministros da Educação; quatro presidentes do FNDE, o fundo que banca as
políticas públicas do setor; e cinco presidentes do Inep, o órgão responsável
por monitoramento e avaliação do sistema educacional, além da aplicação do
Enem, porta de entrada dos jovens no ensino superior. À luz do atual escândalo,
está claro que exterminador do futuro de crianças e adolescentes brasileiros é
o veneno que mistura desmonte institucional, violação à laicidade do Estado,
tráfico de influência, corrupção e propina em barra de ouro.
Jair Bolsonaro nunca
escondeu ser motor de destruição da educação, da cultura, do meio ambiente.
Elegeu-se para, em aliança com líderes evangélicos, militares, grileiros,
lobistas das armas, levar a nocaute direitos humanos, instituições
democráticas, reputação diplomática, pactos civilizatórios consagrados. Na
educação, indicou, segundo declaração do próprio titular da pasta, o pastor
presbiteriano Milton Ribeiro, um par de religiosos sem cargo no governo para
intermediar o acesso de prefeituras aos recursos do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação, sob a gestão de aliados do Centrão.
A parceria público-privada
de pilhagem do Estado já tinha sido identificada pela CPI da Covid, tanto no
gabinete paralelo de formulação da política pública de saúde quanto nos
intermediários ilegítimos da compra de vacinas. A comissão parlamentar
apresentou ao país o reverendo Amilton Gomes de Paula, da Secretaria Nacional
de Assuntos Humanitários, uma entidade social batizada como órgão público. O
religioso conseguiu uma reunião no Ministério da Saúde para a empresa Davati
oferecer ao governo 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca, imunizante que
já era alvo de acordo do laboratório estrangeiro com a Fiocruz. O reverendo
Amilton logrou em quatro horas o que a Pfizer levou meses para conseguir.
Há uma Secretaria de
Comunicação e um gabinete do ódio, que opera com participação do filho vereador
do presidente, presente em reuniões oficiais, mesmo sem cargo. No mês passado,
Carlos Bolsonaro foi à Rússia e sentou-se ao lado do pai em agenda da área de
Defesa, em que ministros militares foram coadjuvantes. Há ministros da Saúde e
uma equipe extraoficial de consultores presidenciais pautados pelo
negacionismo. Há o ministro da Educação e os pastores sem cargo, Gilmar Santos
e Arilton Moura, prometendo recursos em troca de propina, conforme denúncias da
imprensa só agora na mira dos órgãos de investigação e controle, como PGR, MPF,
CGU e TCU. No modelo dual de gestão pública sobre o qual o governo Bolsonaro
está assentado, para dissimular imoralidade ou ilegalidade, quem aparece não
manda, quem manda não aparece.
Enquanto isso, a ONG Todos
Pela Educação apurou que, entre 2019 e 2021, houve salto de 66% no número de
brasileiros de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler nem escrever. Num par de
anos, o total passou de 1, 4 milhão para 2, 4 milhões de crianças. 'A não
alfabetização em idade adequada traz prejuízos para aprendizagens futuras e
aumenta os riscos de reprovação, abandono e/ou evasão escolar', alertou a
instituição. O primeiro ano da pandemia, segundo a Síntese de Indicadores
Sociais do IBGE, deixou 92, 7% dos estudantes de 6 a 17 anos da rede pública
sem ensino presencial; 12, 4% não tiveram nem aula nem atividades remotas.
Escolas públicas ficaram 287 dias sem aula sem 2020; só 35% promoveram aulas ao
vivo pela internet.
O Unicef informou que, em
estados brasileiros, três de cada quatro crianças do segundo ano do ensino
fundamental estão fora dos padrões de leitura; era uma em duas antes da
pandemia. No país, 10% dos estudantes de 10 al5anosnão planejavam voltar às
aulas quando as escolas reabrissem. No documento apresentado no Dia
Internacional da Educação, 24 de janeiro, a agência da ONU para a infância
denunciou a perda de habilidades básicas de aritmética e alfabetização: 'Além
da perda de aprendizado, o fechamento das escolas afetou a saúde mental das
crianças, reduziu seu acesso a uma fonte regular de nutrição e aumentou o risco
de abuso'.
Atraso escolar, fome e
violência foram o que brasileirinhas e brasileirinhos colheram, enquanto
presidente, ministro e pastores pavimentavam o caminho da pilhagem. Tudo aponta
para o maior escândalo do governo Bolsonaro - o que parecia impossível, após os
658 mil mortos pela Covid-19 -se as instituições, até aqui adormecidas,
funcionarem.
Flávia Oliveira, O Globo
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