População em situação de rua disparou na pandemia - e também mudou drasticamente de perfil, incluindo mais mulheres e crianças. Falta de contagem oficial dificulta elaboração de políticas públicas específicas.
O cenário se repete em
inúmeras cidades brasileiras, sobretudo nas capitais: são centenas de barracas,
enfileiradas em largas avenidas, debaixo de marquises, túneis, viadutos.
Famílias inteiras, com crianças, estão vivendo nas ruas.
A população em situação de
rua no Brasil não apenas cresceu em ritmo avassalador com a crise econômica e
social do país em meio à pandemia, nos últimos dois anos, mas também mudou
drasticamente de perfil. De acordo com pesquisas acadêmicas recentes e
informações do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), as mulheres, e
consequentemente crianças, passaram a ser um contingente bastante expressivo
dessa população.
O único dado oficial mais
recente, mas que ainda se trata de uma projeção, foi divulgado em março de 2020
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): 221.869 brasileiros
viviam nas ruas naquele ano, o equivalente a cerca de 0,1% da população total
do país. Para o MNPR, cerca de meio milhão de brasileiros podem estar morando
nas ruas hoje, especialmente por falta de condições financeiras para pagar
moradia.
"A população de rua é
um gráfico crescente desde sempre. Não conseguimos perceber, em nenhum momento
da história, a diminuição das pessoas em situação de rua, porque elas sempre
foram invisíveis para a política nacional. Tanto é que ainda nem temos uma
contagem dessa população pelo IBGE. Isso está previsto agora, mas vai ser uma
contagem parcial, porque vão fazer contagem de moradias precárias, barracas,
etc. Pessoas que dormem em papelão, em marquises, não deverão ser
contabilizadas", prevê Darcy Costa, ex-morador de rua e hoje secretário
nacional do MNPR.
Famílias inteiras na rua
Segundo Costa,
"famílias inteiras estão indo para a rua no Brasil", com aumento
preocupante do volume de crianças e mulheres nessa situação. Devido a uma
grande articulação política do movimento, o Congresso Nacional assumiu o
compromisso de criar um Observatório Nacional da População de Rua, mas o
projeto ainda não saiu do papel.
"É importante ressaltar
que 1/3 dessa população, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, está
na rua a partir da covid-19. São trabalhadores que já estavam em situação
precária e que, com a crise sanitária, econômica e social ampla, perderam a sua
rede de proteção social. Eles passam a não ter outro recurso, a não ser a rua.
Esse perfil é o sujeito que era garçom, carregador, perdeu o trabalho, não pode
mais pagar aluguel e vai com a família toda para a rua", explica Marcelo
Pedra, doutor em saúde coletiva e pesquisador do Núcleo de População em
Situação de Rua da Fiocruz.
Pedra, psicólogo sanitarista
que dedicou seu doutorado ao trabalho dos consultórios de rua no Brasil – hoje
são 171 equipes, cada uma com capacidade de atendimento de mil pessoas na rua
–, coletou dados alarmantes sobre o crescimento de mulheres nas ruas. Se em
2008 elas eram 12% da população de rua, agora, segundo o pesquisador, são ao
menos 35%, isso considerando dados subestimados de 2020, com base em pessoas
que têm cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS).
Gráfico mostra número
estimado de pessoas em situação de rua no BrasilGráfico mostra número estimado
de pessoas em situação de rua no Brasil
"É bastante provável
que esse número seja bem maior", afirmou à DW Brasil. O psicólogo explica
que certamente esse número é subnotificado, pois há uma enorme invisibilidade
da população de rua. Houve pressão do MNPR e de congressistas – em 2020 foi
criada a Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da População em Situação de
Rua, presidida pela deputada Erika Kokay (PT/DF) – para que o IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) incluísse, no censo de 2022, dados sobre
a população em situação de rua. O censo deveria ter sido feito em 2020, mas foi
adiado devido à pandemia.
"Historicamente, a
operação censitária no país consiste não só no recenseamento da população, mas
também dos domicílios onde essa população habita. Com esse entendimento, o IBGE
não apura 'população em situação de rua' na sua integralidade. Sensível e
compreendendo o fenômeno da exclusão habitacional na urbanidade brasileira, o
IBGE buscará no Censo Demográfico 2022 melhorar a caracterização da população
em situação de precariedade habitacional", informou à DW Brasil a
coordenação de comunicação do IBGE.
Os técnicos do instituto
explicaram que, pela nova metodologia o censo vai identificar as pessoas que
vivem nas ruas nas seguintes situações: em tendas ou barracas de lona, plástico
ou tecido; nos logradouros públicos, construções de tapume, lata, zinco, tijolo
ou outros materiais em calçadas, praças ou viadutos; em cama, colchão ou saco
de dormir dentro de um estabelecimento; em estruturas não residenciais
degradadas ou inacabadas (fábricas, galpões, prédios de escritório); em
veículos (carros, caminhões, trailers, barcos); em abrigos naturais e outras
estruturas improvisadas (vagão, gruta, cocheira, ruínas de construções não
residenciais, paiol).
Falta política de Estado
para a população de rua
Em 2009, ainda no segundo
mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi publicado um decreto
instituindo a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Comitê
Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento (Ciamp-Rua). À época, os dados
governamentais apontavam a existência de aproximadamente 32 mil pessoas vivendo
nas ruas em todo o país. A ideia era que municípios e Estados criassem comitês
intersetoriais para atender a população de rua com políticas públicas diversas.
Ao tomar posse em 2019, Jair
Bolsonaro desfez vários conselhos de representação popular, entre eles o
Ciamp-Rua. Coube ao vice-presidente Hamilton Mourão assinar um novo decreto, em
junho do mesmo ano, durante ausência de Bolsonaro do país, recriando o comitê
da população de rua. O colegiado passou a ser um órgão consultivo do Ministério
da Mulher, Família e Direitos Humanos, coordenado pela ministra Damares Alves.
Segundo Darcy Costa, do
MNPR, o colegiado foi recriado com novo formato, menos fortalecido, além de ser
apenas consultivo, não deliberativo. Houve, ainda, letargia para eleger os
membros do Ciamp-Rua, e as reuniões só foram retomadas de fato em 2021.
Segundo ele, o movimento da
população de rua considera que criar a política nacional por decreto é frágil,
e por isso há uma articulação para pressionar o Congresso Nacional a aprovar um
projeto de lei que tramita no Legislativo desde 2016 (projeto de lei 5740/16).
"A gente acredita que a
forma de se resolver a situação da população de rua é por meio de um programa
de governo, uma politica de Estado, de moradia social em escala. É nisso que a
gente acredita, e é nisso em que estamos trabalhando. Independente da troca de
governo, que isso possa se garantir, e se resolver a habitação para essas pessoas
com programas de moradias sociais", explica Costa.
Procurado pela reportagem da
DW Brasil para fornecer esclarecimentos sobre políticas públicas para a
população em situação de rua, o Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos informou que responderia a perguntas por escrito no dia 4 de março,
após o feriado de Carnaval. No entanto, não as enviou até o fechamento desta
reportagem.
"O Brasil está de volta
à fila do osso"
De 2012 a 2016, Darcy Costa,
que era corretor de imóveis, viveu nas ruas. Hoje, aos 55 anos, retomou o
relacionamento com os filhos e está construindo uma nova família, com outra
companheira. "A saída da rua é muito mais uma exceção do que regra",
admite o atual secretário nacional do MNPR.
"Dormíamos embriagados,
para o sono vir logo. É a depressão na hora de dormir, e a angústia de manhã,
ao acordar. Você olha, vê as pessoas passando, indo trabalhar, e pra gente que
vive na rua parece que o tempo parou e que estamos dentro de uma realidade que
não tem saída. É uma sensação horrível", desabafa Costa. Ao conhecer o
movimento de rua, em 2013, ele começou, aos poucos, a reescrever uma nova
história.
O mesmo aconteceu com
Vanilson Torres, que hoje representa o MNPR no Conselho Nacional de Saúde. Dos
12 anos de idade aos 41 ele viveu nas ruas. "Se não fosse o movimento,
hoje eu não estaria vivo." Vanilson, também poeta de Cordel, que vive em
Natal, tem hoje 49 anos e é um dos mais articulados líderes do MNPR.
"Neste governo
Bolsonaro, negacionista, responsável por um número expressivo de mortes na
pandemia, não podemos ter nenhuma perspectiva de mudanças para a população de
rua, pois o Brasil está de volta à fila do osso", disse, referindo-se ao
aumento também da fome no país.
Moradia social em larga
escala é solução, diz movimento
Na opinião de Costa, "a
forma de se resolver a situação da população de rua é criar um programa de
governo, uma política de Estado, de moradia social em escala". "É
nisso que a gente acredita, e é para isso que estamos trabalhando. Independente
da troca de governo, que possa se garantir, e se resolver a habitação para
essas pessoas com programas de moradias sociais."
Ele afirma que o atual
modelo de atendimento da população de rua tem enormes burocracias e é
semelhante a uma prisão, sem criar oportunidades de resgates pessoais dos
cidadãos - isso sem falar na insalubridade e péssimas condições de higiene de
abrigos.
O modelo assegura a
"sobrevivência” do indivíduo, sobretudo garantindo alguma alimentação
aponta. "Mas essas pessoas sobrevivem em situação de miséria, são
atendidas com políticas intersetoriais nesta situação de rua e de miséria. Elas
precisam estar morando em algum lugar, precisam ter direito à privacidade, para
que possam se organizar de alguma forma. São pessoas que carregam as suas casas
nas costas, em sacos, e nunca se organizam."
O MNPR aposta no movimento
Moradia Primeiro (Housing First, importado dos Estados Unidos), que oferece uma
habitação sem burocracia. Em algumas cidades do país, como Curitiba, há
projetos-piloto. E a frente parlamentar em defesa da população de rua aprovou
uma emenda de R$ 7 milhões para o programa ser desenvolvido no Distrito
Federal.
"Demos pequenos passos
na pandemia, mas de grande significado para a população de rua. Esperamos que
no próximo governo a gente possa ampliar esses direitos, que cheguem de forma
global nesta demanda enorme que o Brasil tem hoje. Precisamos resolver
isso", afirma Costa, sem esperança de que algo avance neste ano eleitoral.
Em agosto do ano passado a
ministra Damares Alves assinou uma portaria (Nº 2.927) instituindo o Programa
Moradia Primeiro, mas para o MNPR a concessão de moradias
"temporárias" é um erro. Além disso, o programa pouco avançou além
das experiências piloto no país e o orçamento é ínfimo.
"Resgate" das
famílias precisa ser célere
Quanto mais tempo uma pessoa
vive em situação de rua, mais complexa será a sua reinserção na rede de
assistência do setor público, explica o pesquisador Marcelo Pedra, da Fiocruz.
É por isso que ele alerta para uma ação governamental mais célere, que possa,
num primeiro momento, resgatar essas famílias, mulheres e crianças em situação
de extrema vulnerabilidade.
"Esse novo contingente
de pessoas que está agora nas ruas tem características mais conectadas com o
que é ofertado pelas políticas públicas hoje: se conecta mais rapidamente a abrigos,
ofertas de emprego que acontecem pela via das políticas públicas. Quem está a
menos tempo na rua consegue se organizar mais rapidamente para acessar esses
direitos. Isso não quer dizer de maneira nenhuma que é para se esquecer pessoas
que estão mais tempo na rua", explica Pedra.
A questão crucial, explica,
é que as pessoas há décadas nas ruas criam estratégias de sobrevivência e se
organizam de maneiras fora do sistema formal. As políticas públicas, o SUS e a
rede de assistência social, diz ele, precisam ter ofertas diferentes para
pessoas com perfis diferentes.
"Ninguém faz gestão do
que não consegue quantificar. A primeira coisa é produzir conhecimento, é o
censo. Temos urgência deste censo, e a população de rua precisa ser incluída de
maneira geral. É a primeira coisa", afirma Pedra.
Além disso, outro passo
emergencial para minimizar o sofrimento das pessoas nas ruas é ouvir, "da
maneira mais célere possível", um amplo conjunto de atores com
conhecimento da situação da população de rua para desenhar novas políticas
públicas.
Malu Delgado, DW
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