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Explosão é vista na capital ucraniana Kiev no dia 24 de fevereiro - Foto: Gabinete do Presidente da Ucrânia via EBC |
GUERRA NA UCRÂNIA
Sessenta anos depois da crise dos mísseis em Cuba, Rússia e EUA
voltam a se enfrentar, sob olhar atento da China
Era outubro de 1962. O
guia espiritual do Colégio Santista, a escola marista em Santos, padre Paulo
Horneaux de Moura, entrou, com ar solene, na sala da então quarta série
ginasial e nos advertiu que o mundo passava por um momento aflitivo, que
poderia resultar num conflito nuclear. Os Estados Unidos haviam detectado que a
União Soviética plantara mísseis balísticos na Cuba de Fidel Castro, a 90
quilômetros de Miami, e, a menos que fossem retirados, seriam obrigados a
reagir…
Um ano antes a União
Soviética erguera o Muro de Berlim para evitar a crescente fuga de cidadãos de
Berlim Oriental, sob seu controle desde o fim da Segunda Guerra Mundial, para a
parte ocidental da ex-capital alemã, sob o domínio dos EUA, da Inglaterra e da
França. A tensão entre o Ocidente e a União Soviética atingira níveis
perigosos. O espectro de um confronto nuclear assombrava o mundo. Depois de
intensas negociações, à frente o jovem presidente dos EUA, John Kennedy, e o
experiente Nikita Khrushchov, pela União Soviética, chegou-se a um acordo: os
EUA retiraram seus mísseis balísticos dirigidos contra a União Soviética a partir
de bases instaladas na Turquia e a URSS levava os seus de volta para casa –
deixando Fidel Castro furioso, segundo consta na história.
Seis décadas depois, num
mundo mais sofisticado e num quadro geopolítico muito mais complexo, mais
atores em cena, as posições se invertem, com a Ucrânia no centro da disputa e a
Rússia já desdentada, a partir da queda do Muro de Berlim, dos satélites que
formavam a União Soviética. Queda esta, vivenciada pelo atual mandatário da
Rússia, desde Dresden, então parte da Alemanha Oriental, onde servia na temida
KGB, o todo-poderoso serviço secreto da ainda União Soviética. Voltando para a
Rússia, escolado pela vivência e o conhecimento dos subterrâneos da sociedade,
escalou os degraus do poder em seu país, que se fragilizou desde a época da
Glasnost e da Perestroika, vãs tentativas de modernização e liberalização dos
sistemas políticos e econômicos do bloco soviético – abrindo espaço para um
domínio hegemônico dos EUA sobre o mundo.
Eternizando-se no poder na
já solitária Rússia, Putin não esconde sua nostalgia pelos tempos da União
Soviética, surgida há exatos 100 anos e cujo desaparecimento classificou como
“o maior desastre geopolítico da história”. Consolidando-se, cada vez mais, no
comando da Rússia, intervém, sem contestações, em porções da ex-URSS, como a
Ossétia do Sul e a Abecásia, regiões que procuravam se independentizar da
vizinha Geórgia. Agora, avança militarmente sobre a Ucrânia, da qual já tomou a
região Crimeia, alegando que os dois países têm história comum e populações que
se mesclam, mas, essencialmente, pelo namoro do país com a Otan – a Organização
do Tratado do Atlântico Norte, que reúne os EUA e 30 países da Europa e a União
Europeia, que já atraíram para sua órbita quase todos os países que se alinhavam
à ex-União Soviética, inclusive as vizinhas Estônia, Letônia e Lituânia.
A nostalgia do poder da
ex-URSS por parte de Putin deve ter aumentado, nos últimos tempos, à medida que
cresceu a importância da China no contexto mundial, tirando da Rússia o status
de maior potência desafiadora da hegemonia dos EUA no mundo. No ano passado, os
EUA continuavam a primeira economia do mundo (segundo previsão do FMI de
outubro de 2021), com PIB de US$ 20,894 trilhões, e a China já ocupava o
segundo lugar, com US$ 14, 686 trilhões. A Rússia aparecia apenas em 11º lugar
com modestos US$ 1,479 trilhão, valor semelhante ao do Brasil. Além disso, a China
aumenta sua presença e influência globalmente desde o começo deste século:
lançou a iniciativa da Nova Rota da Seda, que envolve propostas de
investimentos e acordos bilaterais com 140 países do mundo, é importante
parceiro econômico dos países da América Latina, aumenta seus laços econômicos
com a União Europeia, ocupa crescente espaço político e econômico na África;
tornou-se, enfim, a maior competidora dos EUA, obscurecendo o papel da Rússia
na política global.
Na geopolítica mundial, a
Rússia ainda mantém um grande trunfo, o arsenal nuclear herdado da União
Soviética, do qual Putin lançou mão, em recente fala, ao justificar a ação
militar contra a Ucrânia: “Quem quer que tente nos impedir… deve saber que a
resposta da Rússia será imediata e levará a consequências nunca enfrentadas na
história”. Não se deve esquecer ainda as capacidades russas em promover guerras
cibernéticas com enorme poder de semear dificuldades entre adversários. E, ao
mesmo tempo em que armava sua ação contra a Ucrânia, Putin tratou de proteger
sua retaguarda assinando com seu homólogo chinês Xi Jinping, em Pequim, um
memorando conjunto sobre “A Nova Era das Relações Internacionais e o Desenvolvimento
Global Sustentável” em que os dois países se propõem a trabalhar unidos na
solução de vários problemas críticos globais. A declaração foi mundialmente
interpretada como uma redefinição da estrutura de poder mundial ao aproximar
ainda mais os dois países face às suas disputas com o Ocidente.
Diferentemente do conflito
dos mísseis soviéticos em Cuba, o embate da Otan, liderada pelos EUA, com a
URSS, apesar de tão grave quanto, tem sido indireto pois a Ucrânia, embora
desejasse, ainda não faz parte da organização. O máximo que os membros do pacto
puderam e têm feito é reforçar as tropas da organização nos países vizinhos,
pois não têm respaldo legal para colocar tropas on the ground, na própria
Ucrânia. Simultaneamente, o presidente Joe Biden, membros de seu governo e
países aliados denunciaram contínua e cotidianamente que Putin invadiria a
Ucrânia, o que acabou ocorrendo. E agora providenciam sanções econômicas contra
a Rússia, cuja eficácia no curto prazo é posta em dúvida.
No decorrer de toda essa
movimentação, entretanto, surgiram contestações sobre a conveniência de a Otan
ter se expandido tanto para o Leste europeu abrigando quase todas as nações que
faziam parte da ex-URSS, projetando sombras sobre a segurança das fronteiras da
Rússia, o que justificaria as apreensões e cautelas de Putin. O fato é que
esses países também foram atraídos pelo potencial econômico e financeiro da
União Europeia, que lhes oferecia novas perspectivas de desenvolvimento depois
da debacle econômica da União Soviética. Seria possível evitar que também
desejassem entrar na Otan?
Escrevo estas linhas
panorâmicas sobre o conflito na sexta-feira pré-carnaval, que não é bem
carnaval em função da pandemia, quando ainda não é possível prever os
desdobramentos dos confrontos na Ucrânia. Tudo indica que Putin quer a
desmilitarização da Ucrânia e a independência, que já reconheceu, das regiões
ucranianas de Donetsk e Luhansk, onde já há conflitos comandados por
separatistas pró-Rússia. Tolerará a permanência do presidente ucraniano,
Volodymyr Zelensky, o ator transubstanciado em político, que gostaria de
incluir seu país na União Europeia e na Otan?
É surpreendente vermos
GUERRA NA EUROPA nas manchetes em pleno 2022. Talvez seja ingenuidade imaginar
que essa manchete está fora de lugar e de tempo. Os atores principais desta
crise da Ucrânia são os mesmos daquela dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962,
quando as imagens predominantes ainda eram em preto e branco.
Luiz
Roberto Serrano, Jornal da USP
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