Para pesquisadores, texto sobre mineração artesanal assinado por Bolsonaro incentiva o garimpo ilegal na região e deve agravar cenário de invasões de terras indígenas e contaminação por mercúrio.
Com um alto índice de ilegalidade, o garimpo de ouro na
Amazônia ganha um novo empurrão do governo Jair Bolsonaro. O decreto
10.966/2022, publicado nesta segunda-feira (14/02), cria o Programa de Apoio ao
Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape) e elege a
região como centro dessa exploração.
Embora o texto use termos como "desenvolvimento
sustentável", "melhores práticas" e "promoção da
saúde", o decreto foi recebido como anúncio de uma catástrofe por
pesquisadores e entidades que acompanham o tema.
Para Alessandra Munduruku, liderança que assiste ao
aumento massivo de balsas garimpeiras dentro da Terra Indígena Munduruku desde
que Bolsonaro assumiu a presidência, em 2019, o decreto escancara as portas
para invasores.
"Nós vamos fazer de tudo para segurar a porta dessa
nossa casa, que é a floresta, para que os garimpeiros não entrem, não arrombem
tudo, não nos matem. Porque esse governo, desde o começo, sempre quis nos
matar", disse Alessandra por telefone à DW Brasil, pontuando que uma das
promessas de campanha de Bolsonaro era não demarcar terras indígenas.
Embora a Constituição Federal proíba a atividade nesses
territórios, muitas licenças concedidas pela Agência Nacional de Mineração
(ANM) estão geograficamente próximas a áreas indígenas, e a exploração avança
também sobre unidades de conservação.
"Esse decreto mostra como o governo vem trabalhando
na Amazônia: ele quer pegar todas as operações ilegais e transformar em legais,
em mercado formal", afirma Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas,
entidade focada em sustentabilidade.
Dias antes da publicação do decreto, um estudo coordenado
por Rodrigues detalhava como o metal precioso é extraído na clandestinidade. Em
Raio X do Ouro, os autores concluem que quase metade da produção registrada de
2015 a 2020 tem origem duvidosa. Cerca de 229 toneladas, das 487 estimadas no
período, podem ser ilegais - e mais da metade (54%) vem da Amazônia.
"Não existe 'mineração artesanal'. O garimpo não é
pequeno, rudimentar, como o título do decreto tenta passar. É uma cadeia
industrial bem organizada, com muitos laços familiares e de negócios que vão
gerar conflito de interesse na hora de fazer controle da origem de ouro",
afirma Rodrigues.
Cadeia de ilegalidades
Ainda não se sabe como o Pró-Mape irá funcionar na
prática. A expectativa, porém, é que as regras detalhadas sejam conhecidas em
breve.
Um decreto complementar (10.965) publicado na sequência
dá mostras do desmonte ambiental: a resolução determina que a ANM adote
critérios simplificados para dar autorização ao garimpo.
"Na prática, todo mundo que fizer pedido de garimpo
terá a concessão. Esse decreto tira o poder da agência de fazer análises",
analisa Rodrigues. O resultado, ressalta a pesquisadora, será uma explosão de
garimpos na Amazônia.
Após a análise de mais de 40 mil registros da ANM e de
imagens de satélite, o Instituto Escolhas aponta que a comercialização com
indícios de ilegalidade envolve as principais empresas que compram ouro de
garimpos na Amazônia. "Nessa teia, há ligação delas com o garimpo
ilegal", afirma Rodrigues.
As principais ilegalidades no comércio do ouro apontadas
são extração em terras indígenas ou unidades de conservação; títulos fantasmas
usados para lavagem de ouro; extração para além dos limites geográficos autorizados;
ausência de informação sobre os títulos de origem; exportação do metal sem os
registros da produção oficial.
Com tanta ilegalidade, seria impossível que autoridades
não detectassem os problemas. "Se o nosso estudo, que usou dados abertos,
consegue comprovar que é possível monitorar o ouro, o governo também consegue e
poderia fazer o mesmo imediatamente", critica Rodrigues.
Impactos irreversíveis
Para Erika Berenguer, pesquisadora sênior das
universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, o decreto sinaliza a
direção que o último ano do atual mandato de Bolsonaro vai seguir. "Pode
ser uma estratégia eleitoral de liberar o que não passou no Congresso. Será o
ano mais difícil e duro para o meio ambiente no país", analisa em
entrevista à DW Brasil.
Ela comanda um dos capítulos dedicados aos impactos da
mineração na Amazônia que compõem o relatório do Scientific Panel for the
Amazon (SPA). O painel tem o objetivo de reunir resultados publicados em
estudos e traçar um panorama do que a ciência já sabe sobre a região.
"Não faltam evidências do grande problema que é o
garimpo na Amazônia, que provoca desmatamento, poluição e destruição de rios,
contaminação de mercúrio nas populações humanas", resume Berenguer.
Uma das conclusões mais chocantes do capítulo no qual
trabalha é o impacto da atividade na segurança alimentar das populações locais.
"O avanço do garimpo é tão alto em certas áreas, como no médio Tapajós,
que os peixes estão tão contaminados que as populações que se alimentam dos
peixes já apresentam uma série de problemas neurológicos por causa do
mercúrio", comenta.
mercúrio, metal
altamente tóxico, é usado por garimpeiros para unir os fragmentos de ouro e
formar amálgamas. Basta o calor de um maçarico para separar os dois metais, já
que o mercúrio se liquidifica e evapora numa temperatura inferior do que o
ouro. Ao fim do processo de extração, as partes que não interessam, como os
restos contaminados, normalmente são jogadas no rio.
"Mercúrio não é expelido pelo corpo, ele se acumula.
Há estudos que falam em aborto natural em botos na Amazônia por conta da
contaminação de mercúrio. Há jacarés com alto nível de mercúrio. São animais,
como o ser humano, que estão no topo da cadeia alimentar", diz a
pesquisadora.
Em comunidades que dependem do peixe como principal fonte
de proteína, o mercúrio se acumula no tecido adiposo, o que gera graves
problemas de saúde. "Estudos com os Munduruku no Tapajós falam em
problemas neurológicos como insônia, ansiedade, dificuldade locomotora e
cognitiva nas crianças. Está sendo indicado que eles não pesquem mais. Agora,
como eles vão viver, o que eles vão comer?", questiona Berenguer.
"É como promover uma matança dos
indígenas"
Alessandra Munduruku sabe dos altos níveis de
contaminação por causa do garimpo. "É como promover uma matança dos rios,
dos povos indígenas", comenta sobre o impacto direito do mercúrio.
Vítima de ataques e de ameaças por denunciar invasões de
garimpeiros no território, Alessandra diz que não vai parar de chamar a atenção
para os crimes ambientais e violações dos direitos indígenas.
"Garimpo não é sustentável. Esse decreto é feito de
mentiras e vai facilitar também a entrada de mineradoras em terra indígena.
Junto com o garimpo, vem droga, prostituição, álcool, pistas clandestinas de pouso,
máquinas que fazem estrada de pouso para os aviões - porque não tem
fiscalização", enumera.
"Quem usa anel e colar de ouro, quem vende mercúrio
para os garimpeiros - todos têm responsabilidade", afirma a líder
Munduruku, lembrando que no território Yanomami, nos estados de Roraima e
Amazonas, há cerca de 20 mil garimpeiros ilegais atualmente.
Nádia Pontes, DW
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