As oportunidades, universalize!
A coisa pública, democratize!
A res pública, consolide!
Em outubro a Constituição brasileira inseriu-se no universo das bodas de prata, completando 25 anos.
Seu nascimento se deu
num cenário turbulento. Muitos que, agora, pegam carona tecendo loas ao seu
sucesso, procuraram de todas as maneiras enxovalhá-la, desfigurá-la, apregoando
até mesmo boicote à sua assinatura.
Ladinos, não
conseguiram vislumbrar que a Constituição Cidadã representaria uma reviravolta
na sociedade brasileira: ampliou as liberdades e garantias individuais,
restabeleceu as eleições livres e diretas, incorporou novos direitos
trabalhistas, assegurou o voto de analfabetos e dos jovens a partir dos 16
anos, além de ter dado fim ao que Chico Buarque e Caetano Veloso intentam - travestida
em nova maquilagem – fazer renascer das catacumbas, a Censura (caso das
biografias).
Nesta seara, o país
goza de certa expertise. Desde a independência, em 1822, o Brasil experimentou sete
constituições. E não restam dúvidas: apesar de – nos idos de 1988 - ter sido a
atual Carta Magna tratada, por não poucos, a açoites e pontapés; é, de longe, a
que apresenta maior densidade democrática, dentre todas elas.
A primeira Constituição
brasileira, publicada em 1824, obteve a maior longevidade: um século e meio,
exatos 157 anos. Legava ao imperador tamanha importância que fez insculpir um
quarto poder, além dos já tradicionais Legislativo, Executivo e Judiciário, o
Poder Moderador.
Por outro lado, a
Constituição de vida mais efêmera foi a de 1934, durou tão somente três anos
que, na prática, se restringiu a um, porque, em 1935, o Presidente Getulio
Vargas determinou a suspensão de sua vigência.
A Constituição de 1937,
outorgada por Getúlio e inspirada na Carta autoritária polonesa, ficou
conhecida como a Polaca.
Em 1961, uma emenda à
Constituição de 1946 estabeleceu o parlamentarismo, derrubado em 1962 quando,
em plebiscito, os brasileiros optaram pela volta do presidencialismo.
A Constituição de 1967
disputa com a primeira, o galardão de qual teria sido a mais autoritária...
Completados 25 anos de
vigência, a atual Constituição da República apresenta-se revigorada. Em um
quarto de século passou por diversas provações, incorporou avanços cristalizados
nos embates e mobilizações sociais, oxigenou-se com as inovações legadas pelo
romper do século XXI, e seu artigo 37 é um desses exemplos.
Com a redação dada pela
Emenda Constitucional nº 19, de 1998, este artigo reflete com primorosa clareza
e precisão alguns baluartes da res-pública¹:
Art. 37. A administração pública
direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...) II - a investidura em cargo
ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou
de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou
emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em
comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração ; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 19 , de 1998) (grifos nossos).
Sim, estamos tratando
do público e do privado, do que está sob a órbita do povo e do que se encontra
sob domínio privado, do que caracteriza e conforma a república e do que atende por patrimonialismo;
sim, estamos tratando do secular confronto entre o nepotismo e a democratização
das oportunidades.
O patrimonialismo ao não estabelecer distinções entre o público e o
privado tipifica-se como cancro da democracia contemporânea, o neoplasma
maligno capaz de nos conduzir, de volta, à antiguidade dos bárbaros, quando
monarcas lidavam com as rendas obtidas pelo governo como se pessoais fossem:
tudo se circunscrevia ao privado, ao familiar, ao pessoal. Daí a origem do
termo: o Estado como patrimônio do governante.
A palavra nepotismo
também se origina do latim; o dicionário Aurélio apresenta como primeira
definição: “autoridade que os sobrinhos e
outros parentes do Papa exerciam na administração eclesiástica.”
Empregada, originalmente,
para caracterizar as relações do papa com seus parentes, a palavra, hoje,
representa o que existe de mais repugnante e abjeto no universo estatal: a
concessão de favorecimento, privilégios ou cargos a parentes no serviço
público.
Sim, a Constituição
Federal, através de seu artigo 37, dispõe sobre esta questão com o devido rigor
republicado. E o Supremo Tribunal Federal reafirmou que é dispensável a edição
de lei para que a regra seja observada por todos os poderes. Julgando recurso,
os ministros enfatizaram que o artigo 37 da Constituição Federal - que
determina a observância dos princípios da moralidade e da impessoalidade na
administração pública - é auto-aplicável.
Em 2008, o STF editou a
Súmula Vinculante nº 13:
“A nomeação de cônjuge,
companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o
terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa
jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o
exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função
gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o
ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
Não bastasse, a edição
do decreto federal nº 7.203, de junho de 2010, tratou de regulamentar o
princípio no âmbito da administração pública federal [aqui].
Mas as praticas de
aparelhamento do estado, antes objeto da nobreza medieval, hoje são adotadas
por diferentes grupos de interesse, da bandidagem pura e simples até a
sofisticação de bandos e quadrilhas encastelados em instituições, partidos
políticos e organizações não governamentais.
E se aboletam na
ilegalidade e nas práticas criminosas, inovando na bandidagem criativa: ‘modernos’
neologismos são criados como nepotismo-cruzado.
Neste tipo de inovação,
os governantes procuraram esconder a prática contratando parentes uns dos
outros: a autoridade da instituição A contrata o filho do dirigente da
instituição B que retribui, contratando o filho do gestor do órgão A. Tudo sob
a luz das trevas, ao largo dos concursos públicos e dos princípios republicanos
insculpidos na Carta Magna.
Como ensina RodouxFaugh, em A lei e a república:
A
impunidade é a mãe da delinquência, da mais desprezível pandilha
Impossível
a criação de cidadãos caldeados no clientelismo
Como
o aço - é no empreender, na independência e no fogo purificador do saber que
são estruturalmente forjados os homens de bem
Não
prevarique e não licencie
Se
abstenha de torcer a justiça
Desdenhe
o favoritismo e manifeste aos brados plena guarida à lei
Faça-a
respeitável e a respeite com reverência
A
lei
A
mesma lei
A
mesma lei para todos
denunciando
os que tornam alguns mais iguais que outros
os
que professam fé e emprestam ares de princípio ao aleive “Aos
amigos tudo, menos a lei; aos inimigos, nada, nem a lei”.
As
oportunidades, universalize!
A
coisa pública, democratize!
A
res pública, consolide!
¹ Res publica, expressão
latina que significa "coisa do povo", "coisa pública", origem
do vocábulo república.