segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Nepotismo e patrimonialismo. Democracia e República



As oportunidades, universalize!
A coisa pública, democratize!
A res pública, consolide!
                                   RodouxFaugh

Em outubro a Constituição brasileira inseriu-se no universo das bodas de prata, completando 25 anos.

Seu nascimento se deu num cenário turbulento. Muitos que, agora, pegam carona tecendo loas ao seu sucesso, procuraram de todas as maneiras enxovalhá-la, desfigurá-la, apregoando até mesmo boicote à sua assinatura. 
Ladinos, não conseguiram vislumbrar que a Constituição Cidadã representaria uma reviravolta na sociedade brasileira: ampliou as liberdades e garantias individuais, restabeleceu as eleições livres e diretas, incorporou novos direitos trabalhistas, assegurou o voto de analfabetos e dos jovens a partir dos 16 anos, além de ter dado fim ao que Chico Buarque e Caetano Veloso intentam - travestida em nova maquilagem – fazer renascer das catacumbas, a Censura (caso das biografias).

Nesta seara, o país goza de certa expertise. Desde a independência, em 1822, o Brasil experimentou sete constituições. E não restam dúvidas: apesar de – nos idos de 1988 - ter sido a atual Carta Magna tratada, por não poucos, a açoites e pontapés; é, de longe, a que apresenta maior densidade democrática, dentre todas elas.
A primeira Constituição brasileira, publicada em 1824, obteve a maior longevidade: um século e meio, exatos 157 anos. Legava ao imperador tamanha importância que fez insculpir um quarto poder, além dos já tradicionais Legislativo, Executivo e Judiciário, o Poder Moderador.

Por outro lado, a Constituição de vida mais efêmera foi a de 1934, durou tão somente três anos que, na prática, se restringiu a um, porque, em 1935, o Presidente Getulio Vargas determinou a suspensão de sua vigência.
A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio e inspirada na Carta autoritária polonesa, ficou conhecida como a Polaca.

Em 1961, uma emenda à Constituição de 1946 estabeleceu o parlamentarismo, derrubado em 1962 quando, em plebiscito, os brasileiros optaram pela volta do presidencialismo.
A Constituição de 1967 disputa com a primeira, o galardão de qual teria sido a mais autoritária...

Completados 25 anos de vigência, a atual Constituição da República apresenta-se revigorada. Em um quarto de século passou por diversas provações, incorporou avanços cristalizados nos embates e mobilizações sociais, oxigenou-se com as inovações legadas pelo romper do século XXI, e seu artigo 37 é um desses exemplos.
Com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, este artigo reflete com primorosa clareza e precisão alguns baluartes da res-pública¹:   

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

(...) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração ; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 , de 1998) (grifos nossos).
Sim, estamos tratando do público e do privado, do que está sob a órbita do povo e do que se encontra sob domínio privado, do que caracteriza e conforma a república e do que atende por patrimonialismo; sim, estamos tratando do secular confronto entre o nepotismo e a democratização das oportunidades.

O patrimonialismo ao não estabelecer distinções entre o público e o privado tipifica-se como cancro da democracia contemporânea, o neoplasma maligno capaz de nos conduzir, de volta, à antiguidade dos bárbaros, quando monarcas lidavam com as rendas obtidas pelo governo como se pessoais fossem: tudo se circunscrevia ao privado, ao familiar, ao pessoal. Daí a origem do termo: o Estado como patrimônio do governante.
A palavra nepotismo também se origina do latim; o dicionário Aurélio apresenta como primeira definição: “autoridade que os sobrinhos e outros parentes do Papa exerciam na administração eclesiástica.”

Empregada, originalmente, para caracterizar as relações do papa com seus parentes, a palavra, hoje, representa o que existe de mais repugnante e abjeto no universo estatal: a concessão de favorecimento, privilégios ou cargos a parentes no serviço público.  
Sim, a Constituição Federal, através de seu artigo 37, dispõe sobre esta questão com o devido rigor republicado. E o Supremo Tribunal Federal reafirmou que é dispensável a edição de lei para que a regra seja observada por todos os poderes. Julgando recurso, os ministros enfatizaram que o artigo 37 da Constituição Federal - que determina a observância dos princípios da moralidade e da impessoalidade na administração pública - é auto-aplicável.

Em 2008, o STF editou a Súmula Vinculante nº 13:
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”

Não bastasse, a edição do decreto federal nº 7.203, de junho de 2010, tratou de regulamentar o princípio no âmbito da administração pública federal [aqui].
Mas as praticas de aparelhamento do estado, antes objeto da nobreza medieval, hoje são adotadas por diferentes grupos de interesse, da bandidagem pura e simples até a sofisticação de bandos e quadrilhas encastelados em instituições, partidos políticos e organizações não governamentais.

E se aboletam na ilegalidade e nas práticas criminosas, inovando na bandidagem criativa: ‘modernos’ neologismos são criados como nepotismo-cruzado.
Neste tipo de inovação, os governantes procuraram esconder a prática contratando parentes uns dos outros: a autoridade da instituição A contrata o filho do dirigente da instituição B que retribui, contratando o filho do gestor do órgão A. Tudo sob a luz das trevas, ao largo dos concursos públicos e dos princípios republicanos insculpidos na Carta Magna.

Como ensina RodouxFaugh, em A lei e a república:
A impunidade é a mãe da delinquência, da mais desprezível pandilha

Impossível a criação de cidadãos caldeados no clientelismo

Como o aço - é no empreender, na independência e no fogo purificador do saber que são estruturalmente forjados os homens de bem

Não prevarique e não licencie

Se abstenha de torcer a justiça

Desdenhe o favoritismo e manifeste aos brados plena guarida à lei

Faça-a respeitável e a respeite com reverência

A lei

A mesma lei

A mesma lei para todos

denunciando os que tornam alguns mais iguais que outros

os que professam fé e emprestam ares de princípio ao aleive Aos amigos tudo, menos a lei; aos inimigos, nada, nem a lei”.

As oportunidades, universalize!

A coisa pública, democratize!

A res pública, consolide!

 ¹ Res publica, expressão latina que significa "coisa do povo", "coisa pública", origem do vocábulo república.