Em pé, bugreiros posam com mulheres e crianças do povo Xokleng capturadas após ataque a acampamento. |
“(...)"Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança" (...)”
As tropas se deslocavam pelas trilhas à noite, em silêncio. Os homens,
entre 8 e 15, evitavam até fumar para não chamar a atenção.
Ao localizar um acampamento, atacavam de surpresa.
"Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio
do facão", relatou Ireno Pinheiro sobre as expedições que realizava no
interior de Santa Catarina até os anos 1930 para exterminar indígenas a mando
de autoridades locais.
Pinheiro era um "bugreiro", como eram conhecidos no Sul do
Brasil milicianos contratados para dizimar indígenas (ou "bugres",
termo racista que vigorava na região naquela época).
O relato está no livro Os Índios Xokleng - Memória Visual, publicado em
1997 pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos.
"O corpo é que nem bananeira, corta macio", prossegue o bugreiro
na descrição dos ataques. "Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço.
Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que
matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança", completou.
Poucas etnias foram tão combatidas pelos bugreiros quanto os Xokleng, de
Santa Catarina. Nesta quarta-feira (30/06), o povo terá seu destino definido
num dos julgamentos mais importantes da história recente do Supremo Tribunal
Federal (STF), que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no
Brasil.
O caso mobiliza as atenções de grupos ruralistas e terá repercussão para
dezenas de povos indígenas brasileiros.
Questão do
'marco temporal'
A corte vai avaliar se a Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ — habitada pelos
Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — deve incorporar ou
não áreas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de
propriedades rurais.
Em jogo está a tese do chamado "marco temporal", princípio
defendido por entidades ruralistas e segundo o qual só podem reivindicar terras
indígenas as comunidades que as ocupavam na data da promulgação da
Constituição: 5 de outubro de 1988.
O governo passou a encampar formalmente essa tese em 2017, quando Michel
Temer era presidente, o que na prática paralisou as demarcações no país.
O princípio, no entanto, faz parte do léxico ruralista desde pelo menos
2009, quando o então ministro do STF Ayres Britto propôs sua adoção ao julgar
um caso sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Os indígenas, por outro lado, são contrários à aplicação do marco
temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territórios
originais antes de 1988.
É esse o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam
que décadas de perseguições e matanças forçaram o grupo a sair do território
que hoje tentam retomar.
"Não tínhamos fronteiras, andávamos por todo aquele espaço. Mas
éramos tutelados, não tínhamos como responder por nós. Mal sabíamos falar
português, imagine nos defender", diz à BBC News Brasil Ana Patté, jovem
liderança Xokleng integrante da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
e assessora parlamentar da deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP).
Patté afirma que o território em disputa era usado pelos Xokleng para a
caça, pesca e coleta de frutos, especialmente o pinhão. A Terra Indígena
Ibirama La-Klãnõ foi demarcada em 1996 e, em 2003, mais que triplicou de
tamanho, passando de 15 mil para 37 mil hectares.
A área hoje em disputa integra a parte incorporada em 2003 e está
parcialmente ocupada por plantações de fumo — atividade que, segundo Patté, fez
o solo e os rios da região se contaminarem com agrotóxicos.
Ela diz que, se o STF julgar que o pleito da comunidade procede, a área em
disputa será reflorestada, o que trará benefícios não só para os Xokleng mas
para todos que dependem dos rios que cruzam aquelas terras.
Já o governo de Santa Catarina afirma que essa área era pública e foi
vendida a proprietários rurais no fim do século 19.
Políticos ruralistas catarinenses apoiam a posição do governo estadual. Em
2008, os então deputados federais Valdir Colatto e João Matos, ambos do MDB,
elaboraram um decreto legislativo anulando a ampliação da terra indígena.
Eles afirmaram que, na área englobada pela ampliação, havia 457 pequenas
propriedades agrícolas, com média de 15 hectares cada.
"Nunca houve, e nem há, critérios seguros para se demarcar áreas
indígenas, ficando a sociedade à mercê do entendimento pessoal do antropólogo
que se encontra fazendo o trabalho num determinado momento", argumentaram
os deputados ao justificar o decreto.
O Estado de Santa Catarina também disputa com os Xokleng 3.800 hectares
onde há sobreposição entre a terra indígena e reservas biológicas estaduais.
Em 2019, o STF decidiu que o julgamento sobre a Terra Indígena Ibirama
La-Klãnõ tem repercussão geral — ou seja, a decisão aplicada ali valerá para
outros casos semelhantes.
Se a corte se opuser à tese do marco temporal, o governo federal em tese
será obrigado a retomar os processos de demarcação que foram travados com base
nesse princípio.
'Potencial de
conflagração'
Essa possibilidade tira o sono de associações ruralistas. Em maio de 2020,
um advogado da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) disse no
STF que a rejeição do princípio do marco temporal traria "um enorme
potencial de conflagração do país e retorno a uma situação muito grave que se
vivia no Brasil antes de 2009 (ano da decisão do STF sobre o caso Raposa Serra
do Sol)".
Já uma decisão favorável ao estabelecimento de um marco temporal tende a
dificultar novas demarcações.
Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há 245 processos de
demarcação de terras ainda não concluídos. Em muitos desses casos, os indígenas
reclamam territórios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988.
Há ainda muitas demandas por demarcação que nem sequer foram analisadas
pelo governo — o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), braço da Igreja
Católica que atua em prol dos povos indígenas, conta 537 casos desse tipo.
Em 11 de junho, o relator do processo sobre os Xokleng no STF, ministro
Edson Fachin, votou contra a tese do "marco temporal".
O julgamento foi suspenso após um pedido de vista do ministro Alexandre de
Moraes. É possível que novos pedidos de vista posterguem uma decisão.
A retomada do caso se torna ainda mais relevante porque avança na Câmara
dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 490, que, entre outros pontos, estabelece
1988 como marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
Se a corte derrubar a tese no julgamento sobre os Xokleng, é provável que
os congressistas tenham de mudar o texto do PL sob o risco de terem a proposta
invalidada pela corte.
Em 2018, num outro julgamento sobre a demarcação de territórios
quilombolas, o STF rejeitou o princípio do "marco temporal".
Colonização
europeia
Após perder dois terços de seus membros no século passado, a população
Xokleng voltou a crescer. Hoje, a etnia soma cerca de 2,3 mil integrantes.
O julgamento no STF em questão não é a primeira ocasião em que um fato
relacionado a esse povo redefine as relações do Estado brasileiro com os povos
indígenas.
Em 1908, o etnógrafo tcheco Albert Vojtech Fric discursou em um congresso
em Viena, na Áustria, sobre o impacto da imigração europeia nas populações
indígenas do Sul do Brasil.
Segundo Fric, a "colonização se processava sobre os cadáveres de
centenas de índios, mortos sem compaixão pelos bugreiros, atendendo os
interesses de companhias de colonização, de comerciantes de terras e do
governo".
Anos antes, Fric havia sido convidado por um grupo de políticos,
humanistas e intelectuais de Santa Catarina para servir à Liga Patriótica para
a Catequese dos Silvícolas.
Enquanto poderosos locais defendiam exterminar os indígenas, esse grupo
propunha uma abordagem mais "light": cristianizá-los e incorporá-los
à força de trabalho nacional.
Fric havia sido encarregado de liderar a "pacificação" dos
Xokleng - termo usado na época para designar a aproximação com indígenas que
mantinham relação conflituosa com a sociedade envolvente.
A presença dos Xokleng era vista como um entrave à colonização da região.
Eram comuns relatos de furtos ou ataques de indígenas a trabalhadores que
avançavam sobre seu território tradicional.
Mas Fric acabou deixando o Brasil antes de cumprir a missão.
Em Os Índios Xokleng - Memória Visual, o antropólogo Silvio Coelho dos
Santos (1938-2008) diz que Fric foi retirado do posto provavelmente por causa
de pressões de companhias de colonização alemãs que atuavam em Santa Catarina e
não concordavam com sua abordagem.
O antropólogo afirma, porém, que o discurso de Fric em Viena teve grande
repercussão na imprensa europeia e estimulou o governo brasileiro a agir para
mostrar que se preocupava com os povos nativos.
Em 1910, durante a presidência de Nilo Peçanha, foi criado o Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), precursor da atual Funai.
Inspirado por ideais positivistas, o órgão dizia ter como objetivo
"civilizar" os indígenas e incorporá-los à sociedade brasileira —
postura enterrada pela Constituição de 1988, que reconheceu aos indígenas o
direito de manter seus costumes e modos de vida.
Mesmo após a criação do SPI, as expedições de bugreiros contra povos como
os Xokleng continuaram a acontecer por décadas.
Em seu livro, Silvio Coelho dos Santos entrevista um bugreiro que diz ter
participado de uma expedição para matar indígenas no governo Getúlio Vargas
(1930-1945), ao menos 20 anos após a criação do órgão.
As missões para aniquilar povos nativos aconteciam enquanto, na Europa,
Adolf Hitler punha em marcha seu plano de exterminar os judeus.
Ou enquanto artistas brasileiros passavam a valorizar a participação
indígena na formação nacional, influenciados pela Semana de Arte Moderna de
1922.
Crianças
assassinadas
A proximidade temporal dos ataques aos Xokleng ainda provoca dor na
comunidade.
Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, Brasílio Pripra, de 63 anos
e uma das principais lideranças Xokleng, chora ao falar de um massacre ocorrido
em 1904 contra seus antepassados.
"As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele
dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado", afirma.
O episódio foi descrito no jornal já extinto "Novidades", de
Blumenau, citado em artigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista
eletrônica argentina Persona, em 2009.
"Os inimigos não pouparam vida nenhuma; depois de terem iniciado a
sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e
gritos das crianças que estavam agarradas ao corpo prostrado das mães. Foi tudo
massacrado", relata o jornal.
Pripra diz ter crescido ouvindo histórias como essa.
"Eu choro, me emociono. Sou neto de pessoas que ajudaram a trazer a
comunidade 'para fora', a fazer o contato (com não indígenas). É por isso que
luto."
Por João
Fellet, BBC
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