HQ está na língua indígena de sinais da etnia terena e em Libras
Uma história em quadrinhos (HQ) retrata, de forma
pioneira, a língua indígena de sinais utilizada pelos surdos da etnia terena,
anunciou nesta semana a Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Segundo a universidade, a obra, produzida por Ivan de
Souza, em trabalho de conclusão do curso de licenciatura em Letras Libras, tem
o propósito de fortalecer o reconhecimento e a preservação das línguas de
sinais indígenas e é apresentada em formato plurilíngue, sinalizada também na
Língua Brasileira de Sinais (Libras).
A UFPR lembra que comunicação por meio da língua
materna é importante pois ajuda a manter viva a cultura, a identidade e a
história dos povos indígenas.
Nas aldeias da etnia terena, localizadas
principalmente no estado de Mato Grosso do Sul, a língua oral terena é
amplamente utilizada. Os surdos dessa etnia também se comunicam com sinais
diferentes dos pertencentes ao sistema linguístico utilizado pelos surdos no
Brasil (Libras). Após diversas pesquisas, especialistas concluíram que esses
sinais constituem um sistema autônomo, chamado língua terena de sinais.
Cultura indígena
O trabalho de conclusão do curso de licenciatura em
Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) teve início em 2017,
quando o estudante pesquisava a história dos surdos no Paraná, na iniciação
científica.
De acordo com a universidade, todo o processo teve
acompanhamento de pesquisadoras que já desenvolviam atividades com os terena
surdos, usuários da língua terena de sinais. A comunidade indígena também teve
participação ativa no desenvolvimento e depois, na validação da obra junto ao
seu povo.
Para a indígena Maíza Antonio, professora de educação
infantil continuar pesquisando o tema é importante para que os próprios
integrantes das aldeias entendam melhor os sinais utilizados por parte de seu
povo.
Indígena da etnia terena, ela trabalha com a língua
materna na escola da comunidade. “Nossos alunos têm optado por estudar na
cidade, por não estarmos preparados para recebê-los em nossa escola. Essa
história em quadrinhos servirá como material didático para trabalharmos com os
alunos surdos e como incentivo para que nós, professores, busquemos novas
ferramentas de ensino nessa área”, disse, em entrevista ao site da UFPR.
Sinalário
Souza e os especialistas que o auxiliaram no projeto
também desenvolveram um "sinalário", isto é, um registro em Libras
dos principais conceitos apresentados na narrativa visual e um glossário
plurilíngue abrangendo palavras utilizadas no dia a dia da comunidade.
“Levantamos os vocabulários que mais se repetiam e organizamos em uma planilha.
Depois buscamos localizar os sinais já existentes em sites e aplicativos.
Filmamos os sinais e disponibilizaremos esse material no YouTube, com o
objetivo de expandir o conhecimento sobre as línguas sinalizadas e de minimizar
a barreira linguística”, explica.
De acordo com o autor, o trabalho tem relevância para
os indígenas da comunidade terena e de outras etnias e para a sociedade em
geral.
“Esse é mais um material disponível para os terena
ensinarem sua história de forma acessível a ouvintes e surdos. É importante
também para mostrar à sociedade como existem povos, culturas, identidades e
línguas diferentes no país. E que essa diversidade precisa ser respeitada,
preservada e valorizada”.
O jovem escritor tem esperança de que o trabalho possa
despertar a sensibilidade para com os povos indígenas e para as demais línguas
de sinais presentes no Brasil. Outro objetivo do autor é que, com o
reconhecimento dessas línguas autônomas de sinais, torne-se possível que surdos
indígenas tenham, de fato, o direito de serem ensinados em sua língua materna
garantido, assim como apregoado na Constituição Federal. Ele pretende
distribuir a HQ em escolas indígenas.
Segundo a UFPR, além de possibilitar a disseminação e
a preservação da língua terena de sinais, a história tem o propósito de
evidenciar a cultura e a história desse povo. O estudante cita uma das
pesquisadoras que trabalhou com ele nesse projeto para definir o que pensa
sobre o tema. “Cada língua reflete um modo de ver o mundo, um modo diferente de
pensar. Se perdemos uma língua, perdemos possibilidades, perdemos a capacidade
de criar, imaginar, pensar de um modo novo e talvez até mais adequado para uma
dada situação”, indica Priscilla Alyne Sumaio Soares em sua tese de doutorado
intitulada Língua Terena de Sinais. “Só podemos preservar aquilo que é
registrado e esse é um dos nossos objetivos, preservar uma pequena parte da
história do povo terena por meio da HQ”, afirma Souza.
A história
A obra Sol: a pajé surda ou Séno Mókere Káxe
Koixómuneti, em língua terena, conta a história de uma mulher indígena surda
anciã chamada Káxe que exerce a função religiosa de pajé (Koixómuneti) em sua
comunidade. Ao ser procurada para auxiliar em um parto e após pedir a benção
dos ancestrais para o recém-nascido, o futuro do povo terena é revelado e
transmitido a ela em sinais. “A história mostra um pouco da rica cultura desse
povo, as situações, consequências e resistência após o contato com o povo
branco”, revela Souza.
Inspirada na história real do povo terena, a narrativa
apresenta a comunidade em uma época em que ela ainda vivia nas Antilhas e era
designada pelo nome Aruák.
A pajé Káxe, procurada por uma mulher em trabalho de
parto, ajuda no nascimento do pequeno Ilhakuokovo.
Trajetória dos terena
A partir daí, a obra ilustra um pouco da trajetória
desses indígenas e da sua instalação em território brasileiro. Buscando
caminhos que levasse aos Andes, em meados do século XVI, os espanhóis
estabeleceram relações com os terena, à época chamados de Guaná, na região do
Chaco paraguaio. A chegada dos brancos acarretou muitas mudanças nas vidas dos
indígenas, que procuraram, durante certo período, locais onde pudessem exercer
seu modo de vida sem a influência da colonização.
Assim esse povo chegou ao Brasil, no século XVIII, e
se instalou na região do Mato Grosso do Sul. Mesmo em outras terras, os
conflitos trazidos pela colonização ainda eram um problema. A Guerra do
Paraguai envolveu os terena, que foram forçados a participar para garantir seus
territórios e, no conflito, perderam muitos membros de sua comunidade. Após a
guerra, questões territoriais continuaram causando embates. Nesse período, os
terena se viram obrigados a trabalhar nas fazendas da região, situação que ocasionou
a servidão dos indígenas.
Segundo a UFPR, com informações da Comissão Pró-índio
de São Paulo, algumas famílias dessa população indígena se mantiveram às
margens das fazendas, ocupando pequenos núcleos familiares irredutíveis à
colonização. Foram essas ocupações que, regularizadas no início de século XX,
formaram as Reservas Indígenas de Cachoeirinha e Taunay/ Ipegue.
A orientadora do trabalho e coordenadora do projeto de
pesquisa institucional HQs Sinalizadas, Kelly Priscilla Lóddo Cezar, destaca que
trabalhar com diferentes línguas envolve conhecimentos históricos com e sem
registros escritos." É necessária uma grande entrega à pesquisa e o Ivan
fez isso com louvor. Além de encantar o povo terena com a HQ, os pesquisadores
participantes e colaboradores se encantaram com seu empenho e sua autonomia
invejável, permeados de humildade”.
As ilustrações da HQ foram feitas por Julia Alessandra
Ponnick, que é acadêmica do curso de Design Gráfico da UFPR, autora,
ilustradora e roteirista de histórias em quadrinhos. A defesa do TCC de Souza
está agendada para o final de março, com o lançamento oficial da história.
HQs sinalizadas
O projeto da UFPR HQs Sinalizadas trabalha com temas
transversais dos artefatos da cultura surda – história, língua, cultura, saúde.
O objetivo é criar, aplicar e analisar histórias em quadrinhos sinalizadas como
uso de sequências didáticas bilíngues para o ensino de surdos. Além da
elaboração de materiais bilíngues capazes de auxiliar na aprendizagem, a
proposta permite aprofundar os estudos linguísticos como prática social.
Todas as HQs produzidas pelo grupo apresentam vídeos
sinalizados, desenhos, ilustrações e escrita do português. “Essas linguagens
podem ser utilizadas, especialmente, quando a proposta destina-se a contemplar
os temas transversais como ética, orientação sexual, meio ambiente, saúde,
pluralidade cultural, trabalho e consumo, congregando professores e
pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento”, sugere Kelly.
Agência
Brasil
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