Os professores não podem desistir de nenhum aluno. Nem deixá-lo para trás. Cada estudante carrega um drama diferente que interfere nos estudos
O PARALELO É INEVITÁVEL. MÉDICO E
PROFESSOR JOGAM NO MESMO TIME. Ambos
trabalham com a mesma e a mais preciosa matéria-prima. A vida. Conjugam também
o mesmo verbo. Salvar. Mas, no Brasil, um oceano os separa. Uns vivem no século
21. Os outros, no 19.
Se um cirurgião dos anos 1800 entrar
hoje numa sala de operação, será incapaz, até, de reconhecer um bisturi. Um
professor da mesma época dará a aula com a desenvoltura de então. Talvez
encontre alguma maquiagem aqui e ali. Em vez do quadro-negro, quadro branco.
Com sorte, eletrônico.
Na era digital, em que a inovação é a
ordem, a educação continua analógica, voltada para as urgências da revolução
industrial – horários rígidos, menininhos de uniforme, sentadinhos um atrás do
outro, recebendo o mesmo conteúdo do mestre que detinha o monopólio do saber.
Preparavam-se, à época, operários pra linha de montagem. Quanto mais iguais,
melhor. Deu certo.
Ocorre que a fila andou. As crianças de
hoje nascem digitais. Mas a escola, ao contrário da medicina, foi incapaz de
fazer a leitura correta do tempo. Manteve-se no passado. Com a informação na
palma da mão e as bibliotecas do planeta no Kindle, ninguém precisa do
blá-blá-blá de pseudo-Googles para saber que Pedro Álvares Cabral descobriu o
Brasil, que Michelangelo esculpiu Davi, que Beethoven compôs aQuinta Sinfonia, que o Japão fica na Ásia.
Precisa, sim, aprender como encontrar a
resposta do que procura e discriminar a mais adequada às suas necessidades. Aí
o professor exerce papel insubstituível – pelo menos na fase em que o país se
encontra. Há experiências de salas de aula totalmente robotizadas, em que só se
encontram estudante e máquina. Daí por que a revista Forbes citou o professor do ensino fundamental
como uma das profissões ameaçadas de desaparecer a partir de 2022.
Com a discussão do novo currículo
nacional comum, o Brasil tem oportunidade ímpar de dar a virada. Poderá tirar
os olhos do retrovisor e olhar para a frente. O que vê? Uma economia uberizada,
sem intermediários, que eliminará centenas de negócios e milhões de empregos.
Já é realidade metrô sem condutor, carro sem motorista, avião sem piloto, hotel
sem recepção, banco sem bancário, arquivo sem arquivista, análise de dados sem
estatístico, jornalismo sem jornalista.
Que homem preparar para um mundo em que
os limites se derretem? A resposta vale um milhão de dólares. Um fato, porém, é
indiscutível. A pessoa precisa ser capaz de ler e entender o que lê. A lei
determina que, ao concluir o 3º ano, a alfabetização tem de ser uma etapa
vencida. Eis o xis da questão. A Provinha Brasil, que testa a habilidade de
leitura e escrita no 3º ano, mostra dados preocupantes.
Em língua portuguesa, nenhum estudante
atingiu nível 8, o mais alto; 0,39% atingiu o 7; 1,65%, o 6; 8,09%, o 5; 11,98,
o 4; 14,96, o 3; 21,73%, o 2; 18,11%, o 1. Nada menos que 23,10% ficaram abaixo
do 1. Em outras palavras: a quarta parte das crianças permanecem analfabetas
depois de, pelo menos, 3 anos de bancos escolares.
Das restantes, muitas apresentam falhas
graves que lhes dificultará o acompanhamento das demais séries. Ficarão pra
trás. A conta vai sendo cobrada ao longo da vida escolar. A moeda: desestímulo,
desinteresse, indisciplina, repetência, evasão. Não por acaso, 1,7 milhão de
jovens compõe a geração nem-nem – nem estuda nem trabalha. Tampouco se deve ao
acaso o fato de apenas 16% dos moços frequentarem a universidade. Nada menos de
84% se perderam no percurso. Convenhamos: alguma coisa está torta.
O
Ministério da Educação apresenta dado arrasador. Mais de 800 000 professores
receberam bolsas de R$ 2,6 bilhões a fim de adquirir habilidades para melhorar
na alfabetização. Resultado: avanço zero
Vale voltar aos médicos. Eles podem
jogar luz sobre caminhos a seguir. Fiquei mais de dois meses em hospital de
excelência em São Paulo (Albert Einstein) para transplante de medula óssea.
Ninguém passa por tão longa internação a passeio. Tem-se a oportunidade de
presenciar ao vivo o funcionamento das equipes de saúde. Impressiona a
obstinação. Elas não desistem do paciente jamais. Mesmo quando os exames dizem
que o prazo de validade está vencido, todos continuam a luta e conservam a
esperança.
Uma das armas de que dispõem é a
ciência. Os profissionais mantêm-se atualizados graças à formação continuada.
Cursos (de saberes variados) fazem parte da rotina. Com o domínio dos avanços
nacionais e internacionais, conhecem novas drogas e novos procedimentos. São
capazes, pois, de escolher o melhor não para curar a doença, mas para curar o
doente singular, com problemas próprios, diferentes dos demais que padecem do
mesmo mal.
Prevenir é a palavra de ordem. Os
possíveis efeitos colaterais têm pouca chance de se manifestar. Medidas prévias
impedem que fatores extradoença interfiram no tratamento. Eficiente sistema de
informação sustenta a coesão do grupo. Médicos, enfermeiros, nutricionistas,
fisioterapeutas, psicólogos, secretários, administrador de banco de dados
compartilham informações da evolução do quadro de cada paciente. A meta: não
deixar nenhum no caminho.
O mesmo deve ocorrer com os
professores, que não podem desistir de nenhum aluno. Nem deixá-lo para trás.
Cada estudante carrega um drama diferente que interfere nos estudos. Cabe,
primeiro, identificá-lo. Diretores, psicólogos, professores, orientadores,
assistentes, secretários, merendeiras, bibliotecários, técnicos de informática
estão na escola para isso. Depois, ajudá-lo a superar a dificuldade a fim de
que pedras soltas aqui e ali não interfiram na aprendizagem. Trata-se da
prevenção, que acena com o êxito e evita o desestímulo e a consequente
trajetória rumo ao fracasso.
Nenhum elo do sistema é mais importante
que o outro. Cada um deve conhecer o trabalho de todos. Diretor e demais
profissionais precisam fazer residência em todos os departamentos – da cozinha
à direção. Se apenas um setor sobressair, dificilmente afetará o conjunto. O
Ministério da Educação apresenta dado arrasador. Mais de 800 000 professores
receberam bolsas no valor total de 2,6 bilhões de reais a fim de adquirir
habilidades para melhorar na alfabetização. Resultado: avanço zero.
Ser professor, assim como ser médico,
não é idealismo. É profissão. Exige um plano de carreira sedutor, que atraia os
cérebros que hoje fogem para outras carreiras ou se refugiam no serviço
público. Os melhores, tal como ocorre na Finlândia, precisam querer ser
professor por opção, não por exclusão. Metas claras, cobrança rigorosa e premiação
do mérito formam tripé inseparável. Quem não corresponder pode e deve ser
excluído.
Fazer o paralelo da escola com uma
instituição de saúde de ponta não é gratuito. Escolas e hospitais com
procedimentos improvisados, verdadeiros depósitos de gente e cemitérios de
esperança, provaram ser a receita do cruz-credo. São parâmetros da
mediocridade. Quando o serviço público abre mão da excelência, acende o sinal
verde para que o setor privado o siga. Por isso a escola, como os hospitais de
excelência, deve formar um clube cujo lema seja Nem um a
menos.
O foco do hospital é o paciente. O da
escola, o aluno. Cada um deve merecer acompanhamento de perto para que não se
perca no caminho. Paulo, João, Maria ou Pedro são únicos. Com compaixão, vemos
neles nossos filhos, nossos netos, sobrinhos, afilhados. Graças a uma escola
acolhedora e de qualidade, jovens deixarão de engrossar as estatísticas da
população carcerária. Ocuparão lugar de destaque em vez de celas desumanas,
superlotadas e sem saída.
Por Dad Squarisi, na Veja.com
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