No ano passado, Alderico Ferreira da Silva, 57, largou o emprego num
centro de assistência social e entregou a casa onde vivia sozinho de aluguel.
Sem dinheiro, voltou para uma situação em que já esteve outras vezes –a de
morador de rua. Convencido por colegas, só não largou a faculdade de
enfermagem. Passando as noites em um abrigo, deve se formar no fim do ano e
acaba de conseguir emprego em um hospital.
Desde criança em Salvador meu sonho era ser alguma coisa. Meu pai queria que eu fosse médico. Em casa eu era o caçula de cinco filhos. Mas o regime era muito rígido. Tempo da sola, da palmatória. Todo mundo se mandou.
Quando completei 13 anos eu disse “basta” e saí de casa. Comecei a trabalhar. Tudo o que aparecia na frente eu queria fazer. Em Salvador eu ficava em pensão. Em algumas das construções onde trabalhei tinha alojamento.
Não precisei pegar nada dos outros, nem fumar droga, nem vender porcaria. Meu pai me ensinou os valores. Sempre trabalhei, sempre procurei estudar. Mesmo nessa vida de rua, nunca pedi nada para ninguém. Se estiver sem emprego eu cato uma lata, quando não tem um bico eu pego papelão e vendo.
Em Salvador estava fraco de serviço, então vim para cá nos anos 80. No dia que cheguei em São Paulo já peguei um serviço, como auxiliar de manutenção em fábrica. Depois trabalhei como metalúrgico e morei em Santo André [ABC].
Aí comprei uma casinha em São Mateus [zona leste]. Um dia eu saí para trabalhar e quando voltei um pessoal [envolvido com tráfico de drogas] tinha tomado a casa.
Fui para Franca [no interior de SP], na época que tinha muita oferta de emprego lá. Fiz bicos carregando saca de café, trabalhando com papelão. Passei por várias outras cidades. Aí quando consegui um dinheirinho voltei para cá e fiquei no Arsenal da Esperança [abrigo na Mooca].
Não tinha mais casa, não tinha nada. Já estava com mais de 40 anos. Com essa idade ninguém conseguia nada. Então decidi fazer o ensino médio e terminei rapidinho.
Fui trabalhar no programa do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto [no Belenzinho]. Conversando com as profissionais deles, que falavam muito sobre os problemas das pessoas de rua, decidi fazer faculdade de enfermagem e consegui o Fies [financiamento estudantil] integral nos primeiros meses [para estudar na Uniesp].
Aluguei uma casa em São Mateus, bem distante daquele pessoal [que tomou a casa dele no passado]. Mas sabe como é, pessoa que faz faculdade, mora sozinha, paga aluguel e não tem ninguém…
Fui transferido proCratod [centro do governo estadual para tratar dependentes de álcool e drogas], fazia todo o trabalho de agente de saúde. Colocava o cara em pé e no outro dia ele estava drogado de novo. É desgastante.
Eu amava o que fazia. Mas quero ver o meu trabalho evoluir. Pedi para sair. Foi a maior loucura que fiz na vida. Minhas contas estavam se acumulando, eu tinha que estudar, o lugar era longe. Às vezes dormia só três horas por noite, estava esgotado.
Aí o aluguel atrasou e o dono me deu seis meses para acertar. Um dia um parente dele bateu na minha porta e entreguei a casa do jeito que estava, com mobília. Eu ia trancar a matrícula. Três colegas foram pra porta do albergue e disseram: “você tem que se formar este ano”. Não tenho nenhuma DP [reprovação em disciplinas].
Encontrei o padre Júlio [Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua] e falei que estava fazendo faculdade de enfermagem. Pedi um trabalho. Ele tirou uma foto e colocou no Facebook. Consegui um trabalho. Começo no dia 5 como auxiliar administrativo do centro cirúrgico do Igesp [hospital na Bela Vista]. O que eu precisava era o emprego, para voltar a uma vida estável.
Ainda não me formei, estou com 300 horas de estágio para cumprir. Em mais alguns meses eu consigo. O sonho de toda a pessoa que mora no abrigo, no equipamento social, é ter uma “chavinha”. Não tem problema de ser aluguel, ele só quer ter o seu lugar, a liberdade de ir e vir, um lugar só dele. E isso está nos meus planos.
Por Paulo Gomes, na Folha de São Paulo
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