Morto há 80 anos, a profundidade de sua obra só
ganhou destaque a partir da descoberta de um baú com 27 mil fragmentos de
textos que ele não conseguiu publicar
“Se,
depois da minha morte, quiserem escrever minha biografia, não há nada mais
simples. Há só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e
outra todos os dias são meus” (Alberto Caeiro, in “Poemas Inconjuntos”, 1925).
Ao
escrever estes versos, Fernando Pessoa genuinamente não tinha ideia do vulto
que sua obra assumiria alguns anos após deixar este mundo tão discretamente
como viera. A descoberta da profundidade de seus escritos ocorreu tardiamente,
após ser revelado o conteúdo de um baú com cerca de 27 mil fragmentos de textos
que o poeta produziu mas não conseguiu publicar. O acontecimento provocou uma
verdadeira revolução no meio literário, levando o escritor e crítico literário
Antonio Olinto a exaltá-lo na coluna “O GLOBO nas Letras”, de 16 de dezembro de
1949, como “o maior poeta português deste século”.
Uma
grande evidência da dimensão que assumiu o culto à sua personalidade foi a
série de homenagens realizadas no cinquentenário de sua morte. Dentre elas, a
mais emblemática foi a exumação e traslado de seus restos mortais do Cemitério
dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, em cerimônia conduzida
pelo presidente de Portugal, noticiada pelo GLOBO na capa do Segundo Caderno de
4 de novembro de 1985.
Fernando
Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, em 13 de junho de 1888, em uma
família da pequena aristocracia portuguesa. Sua infância foi marcada por
adversidades, como as mortes de seu irmão recém-nascido e de seu pai, obrigando
a família a leiloar parte de seus bens e se mudar para um imóvel mais modesto.
Devido ao segundo casamento de sua mãe, com o então cônsul de Portugal em
Durban, na África do Sul, Fernando Pessoa embarcou aos 7 anos de idade para o
país africano. Lá passou a maior parte de sua juventude, recebendo educação em
instituições britânicas e se familiarizando com as obras dos expoentes da
literatura inglesa, como Shakespeare, Edgar Allan Poe e Lord Byron. Em razão
disso, seus primeiros poemas, ainda na infância, são em inglês.
Mais
tarde, três das quatro obras que publicou em vida também foram escritos na
língua inglesa — “Antinous”, “35 Sonnets” e “English Poems I, II e III”,
editados entre 1918 e 1921.
Logo após
o seu retorno a Portugal, em 1905, Pessoa se matriculou na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, abandonando-a antes de sequer completar o primeiro
ano. No entanto, foi nessa mesma época que se aproximou de importantes
escritores portugueses e começou a frequentar círculos literários e encontros
informais nas livrarias, bares e cafés da capital. Com isso, passou a publicar
ensaios em prosa e poesia e a realizar críticas literárias, enquanto exercia
atividades profissionais de meio período, com renda módica.
Em 1915,
colaborou e dirigiu a revista literária “Orpheu”, que foi uma das bases do
movimento modernista em Portugal. Em 1920, conheceu Ofélia Queiroz, a quem
dirigiu a maior parte de suas “ridículas cartas de amor” e teve uma relação tão
intensa quanto instável, que durou 11 anos, entre rupturas e reconciliações que
o fizeram atravessar uma fase de profunda depressão. Em 1924, em parceria com o
artista plástico Ruy Vaz, e já interessado nos estudos do ocultismo e do
misticismo, lançou a revista “Athena”. Somente em 1934, Pessoa publicou seu
primeiro e único livro em língua portuguesa, “Mensagem”, que reunia poemas
sobre grandes personagens da história de Portugal.
Nesse
período de intensa produção literária, ocuparam papel central as publicações de
poemas de sua autoria e, principalmente, de suas grandes criações estéticas,
que foram os seus heterônimos, com destaque para Alberto Caeiro, Álvaro de
Campos e Ricardo Reis, além do meio-heterônimo Bernardo Soares. Segundo alguns
estudos mais recentes, a quantidade de heterônimos, pseudônimos, personagens
fictícios e poetas mediúnicos criados por Fernando Pessoa chegaria a 127 nomes.
Estas
“personalidades”, dotadas de estilos literários próprios e de biografias
distintas, com datas definidas de nascimento e morte, constituem a marca
registrada e a face mais original e instigante do legado de Pessoa, sobre a
qual incide a maior parte dos estudos sobre sua vida e obra. Teria o poeta
transparecido o seu verdadeiro eu, multifacetado, nos seus heterônimos? Ou
estes não passariam de imagens poéticas de sua genial criação? Seria realmente
“o poeta um fingidor”? Perguntas que parecem se esgotar em si mesmas, sem
ensejar respostas definitivas. No entanto, o certo é que, por meio deste
artifício, Pessoa conduziu uma densa reflexão sobre conceitos como verdade,
existência e identidade, que permanece extremamente atual na fragmentada
sociedade contemporânea.
O poeta
morreu no dia 30 de novembro de 1935, aos 47 anos de idade, após ser internado
com diagnóstico de cólica hepática. Devido ao seu reconhecido hábito de consumo
excessivo de álcool, as causas de sua morte são predominantemente associadas às
complicações de uma cirrose. Um dia antes de sua morte, escreveu a sua última
frase: “Não sei o que o amanhã me trará”. De fato, se soubesse, teria
reconsiderado a ideia de que a atribuição de seus futuros biógrafos seria
marcada pela simplicidade. Aqueles que investiram na complexa tarefa de
desvendar o vasto e dramático universo de identidades, máscaras, enigmas e
reflexões de Fernando Pessoa trilharam até então estradas sinuosas, repletas de
armadilhas e bifurcações. Como definiu o escritor e crítico brasileiro
Frederico Barbosa, em trocadilho, o poeta português foi “o enigma em pessoa”.
Várias faces. O poeta português
Fernando Pessoa teve heterônimos com os quais assinava seus poemas
Por Fabio
Ponso, em O Globo