sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sobre álcool e literatura

 (Foto: Tomás Arthuzzi)
Em agosto de 1954, o norte-americano William Faulkner veio ao Brasil participar do I Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo. Segundo os jornais da época, o ganhador dos prêmios Nobel (1949) e Pulitzer (1955 e 1963) passou boa parte do tempo bêbado. Entre uma dose e outra de Mint Julep, seu coquetel favorito, visitou o Instituto Butantan, experimentou camarão à baiana e cortejou Lygia Fagundes Telles. “Se seus contos forem tão bonitos quanto seus olhos, a senhora é, certamente, uma grande escritora”, disse o autor de O som e a fúria, Enquanto agonizo e Luz em agosto. No dia de seu embarque, reza a lenda que, já no aeroporto, Faulkner teria perguntado a Lygia, sua anfitriã: “Afinal, o que eu vim fazer mesmo em Chicago?”.
MINT JULEP: hortelã, bourbon, água e açúcar (Foto: Thomás Arthuzi)
William Faulkner não é um caso isolado de alcoolismo na literatura. A exemplo dele, dezenas de outros, dos mais diferentes gêneros, épocas e estilos, como Charles ­Bukowski, Jack Kerouac e Edgar Allan Poe, também ficaram famosos como bons de copo. Mas, afinal, por que tantos literatos buscaram inspiração no álcool para escrever? A bebida ajudou ou prejudicou sua produção literária? Para responder a essas e outras perguntas, a jornalista britânica Olivia Laing decidiu investigar a vida de seis notórios pinguços — F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Tennessee Williams, John Cheever, John Berryman e Raymond Carver — e publicar o que descobriu no livro The Trip to Echo Spring: On Writers and Drinking (“A viagem ao armário de bebida: sobre escritores e porres”, em tradução livre), ainda inédito no Brasil.
Bebedores contumazes, alguns deles ­protagonizaram histórias que, de tão trágicas, mais parecem anedotas: Fitz­gerald compareceu a uma festa no Hotel Ritz, em Nova York, de pijama, porque o convite pedia “traje informal”; Hemingway gostava tanto de beber que, após fazer a barba, costumava usar uísque como loção; e Williams morreu engasgado após tentar abrir com os dentes a tampa de um frasco de remédio para dormir. “Por que escritores bebem? Não há uma explicação única. É uma combinação de fatores”, afirmou Olivia, por e-mail, para GALILEU. “Muitos deles, quando jovens, usavam o álcool como antídoto para a timidez, a ansiedade e a depressão. Depois, bebiam para enfrentar a pressão de serem famosos.”
Já faz algum tempo que a suposta associação entre literatura e alcoolismo intriga médicos, jornalistas e historiadores. Um dos primeiros a investigar o tema foi o psiquiatra Donald W. Goodwin, da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos. Em 1988, ele decidiu estudar o assunto após descobrir que, dos sete norte-americanos que ganharam o Nobel de literatura, cinco eram alcoólatras: Sinclair Lewis, Eugene O’Neill, Ernest Hemingway, John Steinbeck e William Faulkner. No livro Alcohol and the Writer (“Álcool e o escritor”, em tradução livre), Goodwin conclui que a epidemia que atingiu tantos nomes da literatura norte-americana na primeira metade do século 20 foi, em parte, favorecida pela natureza solitária do trabalho e porque eles eram propensos a ela (sim, a ciência já descobriu a existência do gene do alcoolismo).
 (Foto: Thomás Arthuzi)
DORES DA VIDA
A primeira parte da tese de Goodwin é corroborada pelo filósofo, sociólogo e psicanalista Daniel Lins, da Universidade Federal do Ceará, e a segunda, pelo psiquiatra Ernest Noble, do Centro de Pesquisas em Álcool da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). Autor de O último copo: álcool, filosofia e literatura (Civilização Brasileira), Lins explica que muitos autores bebem para fugir da solidão. “Confessionário aberto a todos, o bar é a pátria do beberrão. Não é à toa que o boteco sempre ajudou a fazer novos amigos, chorar o amor perdido e esquecer as dores da vida. Nele, a escrita chora pela ponta dos dedos”, afirma ele. Dos casos citados no livro, o mais impressionante é o de Marguerite Duras. No auge da doença, a escritora francesa chegava a esvaziar oito garrafas de vinho por dia. “As mulheres não estão imunes ao álcool. Ao contrário: são mais vulneráveis que os homens. Uma das razões é a baixa concentração de água no organismo delas”, conta a psiquiatra Ana Cecília Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas.
Para o psiquiatra Ernest Noble, cinco dos sete norte-americanos que ganharam o Nobel de literatura eram alcoólatras porque tinham predisposição genética para a doença. Em 1990, ele e o farmacologista Kenneth Blum divulgaram no Journal of the American Medical Association a descoberta de um gene que, segundo eles, era responsável pela propensão ao alcoolismo. O tal gene recebeu o nome de D2 e tinha duas variantes: os alelos A1 e A2. Depois de rea­lizarem experimentos com o material genético de 35 cadáveres (de bebuns e abstêmios), Noble e Blum afirmaram que os cérebros dos cadáveres com o alelo A1 possuíam menos moléculas D2 do que aqueles com o marcador A2. “Por terem menos receptores de dopamina que o habitual, os portadores do gene D2A1 sentiam pouco prazer em viver. Por esse motivo, ingeriam álcool em excesso. Foi a forma que encontraram de compensar a reduzida capacidade de absorção da dopamina, a molécula do prazer”, diz o psiquiatra Ernest Noble.
A crença de que o ­álcool estimula a criatividade existe desde que o mundo é mundo. Já na Roma antiga, o poeta Horácio alardeava os efeitos inspiradores do vinho. “Quem bebe só água não escreve bons poemas”, dizia ele, um forte candidato ao título de primeiro bebum literário da história. Para o historiador Henrique Soares Carneiro, docente da Universidade de São Paulo e autor de Bebida, abstinência e temperança na história antiga e moderna (Senac), o álcool como sinônimo de inspiração ganhou força no início do século 20 nos Estados Unidos. “A Lei Seca, que vigorou de 1920 a 1933, só fez agravar o consumo e aumentar seu glamour entre os escritores e intelectuais”, afirma Carneiro.
E o que diz a ciência? Uma dose de conhaque, gim ou vermute pode despertar o Raymond Chandler ou o Dashiell Hammett que existe em cada um de nós? Estudo realizado na Universidade de Illinois, em Chicago, e publicado em 2012 na revista Conscious­ness and Cognition indica que sim. De acordo com Andrew Jarosz, Gregory Colflesh e Jennifer Wiley, autores de Uncorking the Muse: Alcohol Intoxication Facilitates Crea­tive Problem Solving (“Liberando a musa: intoxicação alcoólica facilita a solução de problemas criativos”, em tradução livre), beber álcool em quantidade moderada pode deixar o cérebro mais inspirado para lidar com problemas que exigem criatividade.
No experimento, os autores testaram dois grupos de 40 voluntários, com idades entre 21 e 30 anos. Metade tomou algumas doses de vodca, em quantidade compatível com o peso de cada um, até atingir concentração de 0,075% de álcool no sangue — limite acima do permitido para motoristas na maior parte dos Estados Unidos. A outra metade permaneceu sóbria. Em seguida, os pesquisadores submeteram todos os voluntários ao teste de associações remotas (RAT, na sigla em inglês), questionário que pede aos participantes que estabeleçam uma conexão entre três ou mais palavras aparentemente desconexas. Por exemplo: o psicólogo fala “exército”, “automóvel” e “carnaval”, e o voluntário responde “marcha”. Além disso, os pesquisadores pediram que eles explicassem como chegaram à resposta certa: se através de método de associação ou de lampejo criativo.
Curiosamente, quem estava de pileque acertou mais vezes as respostas (58%) do que os que não ingeriram uma gota de álcool (42%). Eles também responderam mais rapidamente às perguntas (12 segundos) do que os sóbrios (15 segundos). “O estudo sugere que, em alguns casos, o efeito do álcool pode ser útil na resolução de problemas criativos”, afirma Jarosz, um dos coordenadores da pesquisa. Presidente da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas, Jorge ­Jaber admite que, em doses moderadas, o álcool torna o indivíduo mais sociável, aumenta sua sensibilidade a estímulos visuais e auditivos e produz lampejos criativos. “Breves e amadorísticos”, ele faz questão de enfatizar. “O sujeito pode improvisar um bom refrão, mas jamais vai compor uma obra-prima.”
 (Foto: Thomás Arthuzi)
MELHOR AMIGO
No Brasil, a ideia de que tomar umas e outras pode ser fonte de inspiração coloca em lados opostos duas autoridades no assunto: o escritor Ruy Castro e o cartunista Jaguar. O primeiro parou de beber há 27 anos — mais exatamente no dia 25 de janeiro de 1988, quando foi levado às pressas para uma clínica de reabilitação em São Paulo. Desde então, trocou os dois litros de vodca que entornava todos os dias por três bolas de sorvete. “A bebida não impediu que escritores al­coólatras fossem geniais. Mas é provável que sem o álcool eles fossem mais geniais”, diz Castro, que lançou Chega de saudade, seu primeiro livro, em 1990.
Já o segundo pensa diferente. Sem beber cerveja há três anos — desde que recebeu o diagnóstico de cirrose hepática —, Jaguar é enfático: “A maioria das obras-primas da literatura universal não ­exis­tiria se os seus autores fossem abstêmios”, afirma o cartunista, que se orgulha de ter tomado porres homéricos com Graciliano Ramos, Paulo Leminsky e Vinicius de Mo­raes — outro notório beber­rão e autor da frase “O uísque é o melhor amigo do homem, ele é o cachorro engarrafado”. “Metade da minha obra foi feita quando eu estava meio bêbado. E a outra metade, quan­do estava meio sóbrio”, diz Jaguar com um copo de cerveja sem álcool nas mãos.

Ruy Castro também não é um caso isolado. A exemplo dele, dezenas de outros, como Mário Prata, James Ellroy e Laurence Block, garantem não fazer mais uso do álcool. “Poucos escritores conseguem abandonar a bebida, e aqueles que o fazem com frequência sofrem um declínio em sua produção”, conta Olivia. Mas há exceções — como Marguerite Duras. “Ela escreveu seu mais famoso romance dois anos depois de ter parado de beber”, afirma Olivia, referindo-se a O amante, lançado em 1984 e laureado com o Goncourt, o mais importante prêmio da literatura francesa.

Para alguns especialistas, a bebida pode até ajudar na criatividade em doses moderadas, mas jamais será a responsável por nenhuma obra prima. Como diz o escritor Ruy Castro, é provável que, sem o álcool, escritores alcoólatras geniais fossem mais geniais ainda.