Há pouco mais de 80 anos, um jovem inglês chamado Peter Fleming passou alguns meses no país e imortalizou as suas impressões no livro Brazilian Adventure (Aventura brasileira, em tradução livre).
Por Tim Vickery, na BBC
Trata-se de um retrato fascinante do Brasil no início da Era Vargas, escrito por um forasteiro dinâmico e curioso se esforçando para entender o meio. A minha observação preferida: "São Paulo é como Reading (cidade inglesa), só que mais longe".
Ali ele estava combatendo a visão da cidade como uma coisa de faroeste, e frisando a modernidade do lugar, cheio de lojas e prédios. "Esta é a América do Sul que importa", escreveu, "a América do Sul do futuro. Um dia, o subcontinente inteiro será assim".
O livro traz comentários sobre a infantilidade da aristocracia, o estoicismo dos operários, e desprezo total pelos comerciantes – "três quartos do que eles diziam era mentira e o resto não tinha sentido algum". Há ainda a batalha contra a falta de pontualidade, que o escritor não consegue vencer. "Um homem com pressa será muito infeliz no Brasil", conclui.
Hoje em dia, o nome de Peter Fleming não é bem lembrado. Ele foi ofuscado pelo irmão menor, Ian Fleming, criador do personagem 007.
O Fleming mais velho era um homem de ação, operando atrás das linhas inimigas na Segunda Guerra Mundial, enquanto Ian planejava operações de espionagem. É possível que Peter e suas experiências no Brasil fossem um dos modelos para a construção de James Bond.
Mas talvez seja melhor que ele não tenha sido. Porque o 007 da literatura consegue ser pior do que um comerciante brasileiro dos anos 30. O James Bond de Ian Fleming é um esnobe sádico, um safado nato.
Entretanto, mal vejo a hora de assistir ao novo filme da série, 007 contra Spectre, que logo entra em cartaz. Essa contradição aparente se explica pela dinâmica da história social. Ian Fleming começou a escrever os livros em 1952. O primeiro filme, no entanto, só veio uma década depois, num mundo já muito diferente.
Além de ganhar dinheiro e dar asas às suas fantasias, há um outro motivo claro para a produção literária de Ian Fleming. A figura de James Bond é uma resposta à perda de importância e prestígio global da Grã-Bretanha após a Segunda Guerra Mundial.
"Em casa e no exterior nós já não mostramos nossos dentes, apenas as gengivas", lamentou 007 no livro From Russia with Love (Moscou contra 007 no Brasil) publicado em 1957, um ano depois da campanha militar da Inglaterra e da França contra o Egito, que chegou ao fim rapidamente por falta de apoio norte-americano – o momento em que a nova ordem mundial ficou clara para todos.
Neste cenário, Bond aparece como um salvador, não somente da pátria, mas do império britânico.
Mas em 1962, quando o primeiro filme foi feito (007 contra o satânico Dr. No, lançado em 1963), o país estava em um momento muito diferente, desfazendo-se do império - com a independência de colônias britânicas - e investindo mais no social, gerando reflexos na cultura. Finalmente a voz autêntica da classe operária estava começando a ser ouvida.
A explosão musical não tinha acontecido ainda – estava chegando, com os Beatles – mas já havia romances, peças de teatro e filmes feitos por escritores da classe operária, tratando da experiência cotidiana da massa da população.
Sentindo os ventos da mudança, os produtores do primeiro filme de 007 fizeram uma escolha audaciosa e genial: deram o papel principal para Sean Connery. Isso não foi o que Ian Fleming esperava. Com o tempo ele chegou a gostar de Connery como Bond, mas no início ficou chocado.
Ele imaginara um jovem e requintado aristocrata, não em escocês, ex-leiteiro e filho de um operário.
Mas a escolha de Connery foi a chave do sucesso e mudou totalmente o tom da obra. O senso de dever de Bond deixa de ser lealdade para um passado elitizado e vira um reconhecimento de oportunidades para quem tem talento. Em vez de olhar com saudades para o passado, os filmes de Connery miram com entusiasmo um futuro mais democrático.
Infelizmente, a mesma sabedoria na escolha do primeiro 007 nem sempre – ou quase nunca – esteve presente nas decisões sobre os seus sucessores. Mas o atual, Daniel Craig, é de longe o melhor desde Connery. Tem nele una profundidade, um traço de atitude que dá peso ao papel.
Com ele, os filmes conseguem reunir um toque retrô com um aspecto de modernidade. Se 007 Contra Spectre for sua última vez como Bond, vai deixar saudades. O meu candidato para a sucessão: Idris Elba.
Um 007 negro seria uma maneira ótima de dar sequência para a série, para contar histórias que olham para a frente. Seria uma escolha tão audaciosa, moderna e inteligente quanto aquela de Connery em 1962.