Continua tendo repercussão negativa, por desautorizar
parte importante da Lei da Ficha Limpa e representar uma politização de
questões técnicas, como ressaltou em seu voto vencido o ministro do Supremo
Luís Roberto Barroso, o julgamento recente do Supremo Tribunal Federal (STF)
que decidiu que, para as contas de prefeitos (e, em consequência, de
governadores também) serem rejeitadas, precisa haver a aprovação de 2/3 das
Câmaras municipais (ou Assembleias estaduais), não sendo suficiente o parecer
dos Tribunais de Contas municipais ou estaduais.
No julgamento, Barroso advertiu em seu voto vencido:
“Se o prefeito, em lugar de pagar o fornecedor, colocar o dinheiro no bolso, o
julgamento das suas contas não pode ser político, mas, sim, técnico. Ninguém
pode dizer: ‘Eu sou ladrão, mas tenho maioria na Câmara municipal’”.
A principal questão nesse caso é a distinção entre
contas de governo e contas de gestão. Seguindo a linha de pensamento do
ministro do Tribunal de Contas da União Bruno Dantas e do procurador de Contas
do TCU Julio Marcelo, já mencionada na coluna de domingo, Barroso lembra em seu
voto que a fiscalização contábil, financeira e orçamentária da administração
pública compreende o exame da prestação de contas de duas naturezas: contas de
governo e de gestão.
“A competência para julgamento das contas será
atribuída à Casa Legislativa ou ao Tribunal de Contas em função da natureza das
contas prestadas, e não do cargo ocupado pelo administrador”, ressaltou. As
contas de governo, também denominadas contas de desempenho ou de resultados, objetivam
demonstrar o cumprimento do orçamento, dos planos e programas de governo.
Referem-se, portanto, à atuação do chefe do Executivo como agente político. A
Constituição reserva à Casa Legislativa correspondente a competência para
julgá-las em definitivo, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas,
conforme determina o art. 71, I da Constituição Federal. É o mesmo caso da
Presidência da República, cujas contas, depois de parecer do TCU, são
submetidas ao Congresso.
Já as contas de gestão, também chamadas de contas de
ordenação de despesas, possibilitam o exame não dos gastos globais, mas de cada
ato administrativo que compõe a gestão contábil, financeira, orçamentária,
operacional e patrimonial do ente público, quanto a legalidade, legitimidade e economicidade.
Para o ministro Luís Roberto Barroso, a competência
para julgá-las é dos Tribunais de Contas, em definitivo — portanto, sem a
participação da Casa Legislativa respectiva —, conforme determina o art. 71, II
da Constituição. Essa sistemática é aplicável aos estados e municípios por
força do art. 75, caput da Constituição.
Assim sendo, diz Barroso, se o prefeito age como
ordenador de despesas, suas contas de gestão serão julgadas de modo definitivo
pelo Tribunal de Contas competente, sem intervenção da Câmara municipal. Ele
votou pela constitucionalidade da lei complementar 135/2010, a chamada Lei da
Ficha Limpa, na parte em que assenta ser aplicável “o disposto no inciso II do
art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem
exclusão dos mandatários que houverem agido nessa condição”.
Para os fins do disposto nesse dispositivo, incluem-se
entre os mandatários os prefeitos e demais chefes do Poder Executivo, como
entendia o STF anteriormente. Com o julgamento recente, o Supremo alterou seu
entendimento sobre o caso, pois o que vigorava até então era a interpretação de
que, por força dos arts. 71, II, e 75, caput, da Constituição Federal, “compete
aos Tribunais de Contas dos estados ou dos municípios ou aos Conselhos ou Tribunais
de Contas dos municípios, onde houver, julgar em definitivo as contas de gestão
de chefes do Poder Executivo que atuem na condição de ordenadores de despesas,
não sendo o caso de apreciação posterior pela Casa Legislativa correspondente”.
Com esse novo entendimento, a maioria dos prefeitos e
governadores considerados inelegíveis pela Lei da Ficha Limpa escapará da
punição se conseguir — o que é provável — que as Câmaras e Assembleias
Legislativas aprovem suas contas ou simplesmente não as analisem, pois o STF
decidiu também que, em caso de omissão de análise, os executivos não podem ser
considerados inelegíveis apenas com o parecer dos Tribunais de Contas.
Por
Merval Pereira, em O Globo
Para saber mais sobre o livro, clique na sua capa, acima. |