Muitas vezes a expressão “fim do mundo” nos atinge de forma literal. É quando se levanta na forma de uma grande tragédia como foi o holocausto, a escravidão ou Chernobyl.
Outras vezes, vai se materializar no coração de cada um, naquele lugar remoto que acostumamos chamar de tantos nomes, ‘eu interior’, ‘eu profundo’, ‘eu mistério’, ‘eu desconhecido’...
Não são poucos e tão pouco raros os momentos em que o cenário catastrófico se impõe no plano externo e, de forma simultânea, avassala também no plano interno. Aliás, a impressão, pelo menos, é que esta é a situação mais freqüente, aquela em que a colossal pressão envolve e desequilibra, ao mesmo tempo, todos os níveis, externo, interno, e algum outro eventualmente existente. Face e anverso de uma mesma e indivisível moeda.
As obras de Heironymus Bosch dão conta desta expressão de fim dos tempos. No período medieval os ares que respirava a sociedade européia eram densos e carregados: opressão, exílios e perseguições infindáveis, os esdrúxulos processos políticos e religiosos, a selvageria e a barbárie da escravidão – agora convertida numa instituição legal, e os inomináveis genocídios perpetrados na América em busca dos tesouros escondidos. O novo mundo para o europeu só valia pelo ouro e pela prata reluzente.
Nos primórdios do século passado, Alain Virmanux, defendendo uma arte libertadora, também faz referência a um mundo vulnerável, carcomido, moribundo, em estado de decomposição:
(...) ”tudo vai mal, a humanidade à beira do abismo, então precisamos de um teatro que nos auxilie a superar a nossa angústia, como os festivais teatrais da Antiguidade que ajudavam o homem a exorcizar seu medo dos deuses”(...).
Michelangelo com sua magnífica obra pintada na Capela Cistina, Heironymus Bosch e Virmanux exageravam ao denunciar o clima de juízo final que está sempre rondando, onipresente, perigosamente assombrando a espécie humana?
Não, nenhum deles exagerou. É que o ambiente de fim de mundo, de abismo e precipício sempre figurou como ante-sala da longa caminhada do homem para desbravar o desconhecido. Pois não é o desconhecido que nos encanta e atrai como um poderoso ímã cósmico?
Quando tudo parece se reduzir à frieza e imobilidade de uma cápsula filamentosa, eis que a vida se expressa inteira na explosão do casulo hermético e sombrio. A casamata rompe para fazer emergir a forma mais leve e bela, a borboleta. Não bastasse a multiplicidade e fusão de todas as cores, a plástica misteriosamente suave e a textura delicadamente aveludada, ainda voam as borboletas, ignorando a gravidade, traçando vias e avenidas dentre brisas, correntes de ar e ventania. É assim a vida. Quando tudo parece cinza e inamovível, as cores explodem em intensa pujança. Quando tudo parece enevoado com o cheiro nauseabundo da morte, é a vida que insurge, alegre, plena e radiante.
Como ensinam os versos inspirados de Rodoux Faugh:
“Qual morte? Desfecho e desenlace?
Que heresia bradas?
Se algo está para findar
Se o instante é de expirar, perecer,
fechar os olhos a alguém num ultimo e gélido suspiro
Então me sublevo, é um direito que me reservo
E me levanto para dizer não à agonia do crepúsculo, de qualquer crepúsculo
Porque é de existência que se trata
não de perda, jamais de partida
Se algo está para findar e desaparecer
para expirar e se acabar
É nada além de tua estultice lívida, de tua plúmbea insensatez
Porque é de existência que se trata
Sopro de vida, aurora, aura de luz
Fios e mais fios de branda e doce esperança
lânguida como o pulsar de um coração apaixonado
Jamais serás capaz de perceber o palpitar da terra
o respirar das árvores
o nascer e renascer diuturno dos céus e dos ares
A vida jamais se esgota, sequer se engana – eu sei!
O que parece morte é como a vida renascida rompendo o fértil ventre materno
A noite não passa de sutil cortina a abrigar a cândida sonolência dos infinitos raios de sol
Os mesmos que daqui a pouco vão explodir em luz, conformando o novo dia, a nova
era, os novos homens...”
Por que razão Fênix é o símbolo da alma e da imortalidade? Porque após viver séculos e mais séculos tinha que se destruir, se queimar, para então ressurgir de suas próprias cinzas.
Os momentos de grandes e quase insuperáveis crises carregam em sua face mais visível a desgraça incontida, a tragédia mais dolorida e insuportável. Mas, em sua face mais recôndita e reclusa mantém fábricas e mais fábricas de funcionamento diuturno, onde são produzidas as melhores oportunidades, os sonhos mais ardentes e vívidos.
A agonia e a aflição que conforma o fim do mundo acoberta também lampejos e faíscas que arrebentarão em plena luz. Cabe à sensibilidade, clarividência e habilidade de cada um, capturar no olho da noite, a chama da luz divina que iluminará o caminho.
O que se passou no período que conhecemos como a Idade Média? Não é o retrato fiel da eclosão da borboleta, não obstante a fragilidade, rompendo e deixando para trás a pesada casamata, o rígido casulo? O que muitos historiadores denominam Idade das Trevas e do obscurantismo não semeou, fecundou e legou à posteridade a Renascença?
Não foi essa crise generalizada que possibilitou Leonardo da Vinci, Michelangelo, Dante Alighieri, Thomas Morus, Francis Bacon e Shakespeare?
E a crise que martirizava Alain Virmanux, o precipício ameaçador não gerou Artaud, Piscator, Reinhardt, Stanislavski, Meyerhold e Brecht?
Temos que aprender a extrair ensinamentos da histórica lenda, a que alude à ave mitológica dos antigos. Não é sem razão que Fênix aprendeu a renascer das cinzas. Os momentos e instantes de crise podem ser transformados em oportunidades para grandes saltos, grandes avanços e transformações.
As noites são como os cometas que singram o espaço infinito. Por mais longas e sombrias que sejam – não devemos jamais esquecer – carregam na ponta da calda, os mais pujantes raios de sol, como canta Rodoux Faugh, “os mesmos que daqui a pouco vão explodir em luz, conformando o novo dia, a nova era, os novos homens...”.
Artigo de Antônio Carlos dos Santos, publicado na Revista Bula em março de 2008.