quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Por dentro da rotina da Academia Brasileira de Letras

Após renovar três cadeiras em outubro, a entidade fundada em 1897, segue com a missão de cultuar a língua e a literatura do Brasil. Saiba como ela funciona


Por Camila Moraes, no El País


A fachada da ABL, no Rio de Janeiro. / Guilherme Gonçalves/ABL

“Vocês aí gastando o nosso dinheiro público!”, diz um ou outro que passa pela avenida Presidente Wilson, onde fica a Academia Brasileira de Letras, no centro do Rio de Janeiro. A reclamação, segundo Domício Proença Filho, é constante, ainda que descabida. A ABL guarda um tom estatal, é verdade. É um lugar de tradições, ritos e com uma importante missão para o país – cultuar e preservar sua língua e sua literatura –, mas ela faz isso com recursos próprios, coisa que poucos sabem, explica o acadêmico. Aliás, pouco se sabe, além do velho papo sobre imortalidade, fardões e discursos longos e inflados, sobre o dia a dia da Academia, que em outubro deste ano substituiu três de suas 40 cadeiras, num processo de renovação pouco comum para a casa.

A Academia Brasileira de Letras é o retrato de um Brasil. Um Brasil elitista, mas que resiste e é necessário. Foi fundada em 1897, em solo carioca, por um grupo de letrados que escolheu Machado de Assis para presidir a instituição privada e independente, criada para advogar pelos direitos e deveres da língua e das letras nacionais. À época, o país tinha uma população de cinco milhões de pessoas, das quais só 30% sabiam ler. Por isso, ela surge com um pensamento meio messiânico, de transmitir o conhecimento de um pedestal, afirmando que “toda sociedade tem suas elites” e que a ABL “é a elite do pensamento brasileiro”. Era preciso angariar os eruditos para instruir as massas e sentá-los em cadeiras perpétuas, só substituídas em caso de morte.

O modelo do projeto foi a Academia Francesa de Letras, com toda sua pompa e circunstância. E é da França, em 1923, que a ABL ganha finalmente uma sede: o Petit Trianon, prédio que ela ocupa até hoje, construído aqui pelos franceses que queriam uma réplica do palácio de Maria Antonieta em Versailles para um evento diplomático. Foi só nos anos 60 que o presidente da Academia à época negociou com o Governo Juscelino Kubitscheck e conseguiu que o terreno ao lado fosse também doado. Ele então levantou um financiamento para construir nele um prédio de 27 andares, hoje ocupado por escritórios e afins, e essa passou a ser a renda primeira da casa, junto com outros imóveis no Rio de Janeiro, também doados.



Domício Proença queima os votos após eleições. / G. Gonçalves/ABL

Hoje, mais dinâmica, aos 117 anos, algumas coisas mudaram. Alguém se deu conta de que esse grupo exclusivo não sobreviveria se não abrisse suas portas também aos “notáveis” da sociedade, ampliando um pouco a coisa da erudição.

Foi assim que Ivo Pitanguy, o famoso cirurgião, conquistou em 1990 seu assento, sentando-se à mesa com grandes escritores da nação. “Pitanguy é um dos maiores cirurgiões plásticos do mundo. Ele melhorou a beleza de várias mulheres... Mulheres famosas etc. Além de ter um trabalho social fantástico”, diz Domício Proença. Algo parecido aconteceu em 2002 com a chegada de Paulo Coelho, ele sim um escritor, porém, para muitos, mais localizado no setor dos best sellers que no do olímpio literário.

As mulheres – que atualmente correspondem a 12,5% dos acadêmicos –, também foram abrindo espaço. Hoje elas são Ana Maria Machado, Cleonice Berardinelli, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e Rosiska Darcy de Oliveira. Mas a estreia feminina só aconteceu em 1977, 80 anos depois da fundação da ABL, com a romancista, dramaturga e prolífica cronista Rachel de Queiroz. Para Domício, “a entrada da mulher na Academia é um evento totalmente natural, tranquilo, no ritmo da mudança da sociedade”.

Os imortais são sempre escolhidos mediante eleição por escrutínio secreto. Neste passado mês de outubro, os acadêmicos tiveram de se reunir para esse evento tão especial, geralmente bem mais espaçado no calendário, três vezes. Elegeram Ferreira Gullar, depois de anos de resistência do poeta em lançar sua candidatura, para a cadeira de Ivan Junqueira; Zuenir Ventura no lugar de João Ubaldo Ribeiro; e Evaldo Cabral de Mello em substituição a Ariano Suassuna. Apesar dessa mudança ter um efeito imediato de revigoração, o principal impacto da morte repentina dos companheiros foi o que mais afetou a casa, explica Domício. “É muito raro acontecer isso: em três semanas, três partidas inesperadas. São como membros da família que se vão”.

Mas o dia a dia da Academia tem que seguir, e hoje em dia ele é até que bem agitado. Não só os acadêmicos opinam e se alinham em torno de opiniões oficiais sobre temas atuais, como os direitos de autor e a polêmica ao redor das biografias, como tratam – desde 1907 – de chegar a um acordo com os demais países lusófonos sobre a reforma ortográfica que pretende criar um consenso de caráter principalmente político e mercadológico entre todos. Também têm de criar uma programação cultural interna ativa, que inclui conferências com os imortais, seminários com palestrantes externos, exposições, concertos e até sessões de cinema e shows de música popular. Tudo o que eles pensam e fazem é decidido no tradicional chá das quintas-feiras às 16h, ao qual a maioria (residente no Rio, como obriga o estatuto) tenta estar presente, apesar disso ser realmente difícil para alguns por conta da idade avançada.

O tal chá, apesar de rotineiro, é um evento que obedece perfeitamente o gosto da Academia pelo ritual. Muito ali é tradição, afinal o protocolo e as regras são seu grande patrimônio. “Isso é o que nos garante. Eu costumo dizer que “o rito avaliza o mito”, afirma Domício. A verdade é que para ser um membro da ABL não basta publicar livros, fazer densos discursos e assumir como sua a missão da casa. É preciso acreditar que essa dança das cadeiras mantém viva a nossa reduzida e notável sociedade intelectual. Afinal, que seria do Brasil sem suas elites?