Maior voz literária de Israel, Amós Oz examina, em seu novo romance, a figura de Judas — e também narra uma delicada história de amor e amizade
Por Jerônimo Teixeira, de Tel-Aviv, na revista VEJA
NA TRINCHEIRA DA RAZÃO – Amós Oz: “Por toda a minha vida, fui chamado de traidor por causa de minhas posições políticas. Mas isso vale por uma medalha de honra” (Isolde Ohlbaum/LAIF/GLOW IMAGES/VEJA)
Você vai ver Amós? Amós Oz?”, pergunta, em inglês, o motorista de táxi — magro, óculos escuros, cabelo grisalho com rabo de cavalo — ao ser informado do endereço em Ramat Aviv, bairro elegante de Tel-Aviv. Não, ele não conhece pessoalmente esse que talvez seja hoje o maior dos escritores israelenses, mas já conduziu outros passageiros para o lar do autor de Fima e A Caixa Preta. O passageiro pergunta se o taxista leu algum dos livros de Oz, e o tom da conversa logo muda de amistoso para beligerante. “Não, eu não concordo com o que ele pensa”, responde o motorista. E engata um longo discurso sobre a absoluta impossibilidade de paz entre israelenses e palestinos. “Não podemos negociar com esses animais”, diz. Minutos depois, Oz recebe a reportagem de VEJA na ampla sala de seu apartamento no 12º andar, cercado de prateleiras de livros e com um janelão aberto para a paisagem da cidade, apenas uma franja azul do Mediterrâneo no horizonte. Acomodado no sofá, ao lado do afável gato Freddie, o escritor, escaldado no debate público, não se surpreende quando ouve a respeito das opiniões do taxista. “Israel é um país de 8 milhões de cidadãos, 8 milhões de primeiros-ministros, 8 milhões de profetas e messias. Todos acham que sabem o que é melhor. Taxistas, quando me reconhecem de alguma entrevista na televisão, de imediato começam a me educar em política e literatura”, diz. Adiante na entrevista, porém, ele fala de traição, um tema basilar em seu novo romance, Judas (tradução de Paulo Geiger; Companhia das Letras; 368 páginas; 44,90 reais, ou 29,90 reais na versão eletrônica) — e volta ao motorista: “Por toda a minha vida, fui chamado de traidor por causa de minhas posições políticas. Suponho que seu taxista deva pensar que sou um traidor. Mas, em alguns casos, o título de traidor vale por uma medalha de honra”, diz, fazendo o gesto de quem prega uma condecoração na própria camisa. Oz esclarece que não está falando do “traidor trivial”, que vende sua lealdade por dinheiro, mas de pessoas que afrontam a resistência a mudanças de seu tempo e lugar. Cita exemplos históricos como Abraham Lincoln, que, ao abolir a escravidão nos Estados Unidos, terá sido visto como traidor por metade do país. E houve traidores na sua vizinhança: “Quando o presidente egípcio Anuar Sadat veio a Israel para firmar o acordo de paz, grande parte do mundo árabe o chamou de traidor. Quando o primeiro-ministro israelense Menachem Begin devolveu o Sinai a Sadat em troca de paz, muitos israelenses o chamaram de traidor”. Em um ousado lance criativo do romancista, Judas, o apóstolo que traiu Jesus por trinta moedas de prata, é incluído nessa companhia.
Aos 75 anos, Amós Oz é, além de grande escritor, um eloquente defensor da divisão do país em dois Estados, um judeu e o outro árabe, como a única alternativa para a paz. “Pelo barulho que se faz aqui, parece que o país tem o tamanho do Brasil ou da China, mas é menor que a Sicília. No entanto, aqui é o único lar dos árabes palestinos e dos judeus israelenses. Será doloroso mas inevitável dividir essa terra em dois países”, diz. Identificado com a esquerda moderada, Oz viveu décadas em um kibutz, fazenda coletiva de inspiração socialista, e diz que lá aprendeu lições sobre a natureza humana que foram preciosas para seu ofício (Entre Amigos, livro de contos recentemente publicado no Brasil, é todo ambientado em um kibutz). Estabeleceu-se na cosmopolita Tel-Aviv há poucos anos, para viver mais próximo de filhos e netos — antes, levava uma vida mais bucólica em Arad, no Deserto de Negev. Não é propriamente um pacifista: lutou na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e na Guerra de Yom Kippur, em 1973, e ainda neste ano apoiou, com ressalvas, a ação militar israelense na Faixa de Gaza. Diz que conversa regularmente com intelectuais palestinos, mas não aceita ouvir o Hamas, grupo terrorista que domina Gaza e que prega a extinção do Estado de Israel. “Não há concessão a fazer com quem quer o fim de Israel. Não posso sugerir que Israel exista só às segundas, quartas e sextas”, diz.
A expressão “voz da razão” é recorrente, quase um clichê, em reportagens sobre o autor na imprensa ocidental. Como é esperado dele, Oz responde a perguntas sobre política recente com serenidade e agudeza, mas também com certa impaciência. Seu desejo é falar da nova criação ficcional. “Qualquer taxista pode dar uma conferência sobre a política no Oriente Médio. Mas só eu escrevi Judas”, diz.
Falemos, então, de Judas. O título do romance é esse na maior parte das traduções ocidentais, mas, no original, seria O Evangelho segundo Judas — ocorre que em hebraico o nome Judas (Iehuda) é muito comum, e não levanta, por si só, as conotações de traição a que a palavra está associada no mundo cristão. Apesar do título, esse não é um livro centrado em eventos bíblicos. Embora admire O Evangelho segundo Jesus Cristo, do português José Saramago, Oz diz que não queria escrever sobre “personagens que vestem túnica e sandálias e vivem entre cabras”. A história se passa na Jerusalém moderna, entre 1959 e 1960, quando a cidade ainda estava dividida, com uma zona controlada pela Jordânia. O jovem Oz viveu nessa Jerusalém conflituada e define a experiência como “claustrofóbica”. O protagonista é um jovem e atrapalhado estudante, Shmuel Asch, que tem vagos planos de escrever uma tese sobre como os judeus, ao longo da história, viram a figura de Jesus Cristo. A tese empaca; quase ao mesmo tempo, Shmuel é abandonado pela namorada e perde o sustento, pois seus pais passam por sérias dificuldades financeiras. Há algo de cômico no azar do personagem (Oz permitiu-se um fugaz mas satisfeito sorriso quando o entrevistador lhe disse que Shmuel lembrava uma criação humorística do russo Nikolai Gógol), mas ele ao mesmo tempo é dotado de inteligência e sensibilidade. Shmuel aceita uma estranha oferta de emprego e moradia como acompanhante de um idoso e idiossincrático intelectual, Guershom Wald — que, mais do que um cuidador, precisa de um interlocutor, alguém que escute suas perorações sobre a natureza criminosa de todas as crenças e ideologias redentoras (Shmuel, de início socialista e admirador da então recente revolução cubana, aos poucos vai absorvendo esse ceticismo). Na casa, mora ainda a impetuosa e independente Atalia, viúva de Micha, o filho de Wald. O pai de Atalia, Shaltiel Abravanel, fora um excêntrico militante sionista: acreditava que Israel não deveria ser uma nação independente, mas um território sob mandato internacional, onde viveriam lado a lado árabes e judeus. Por essas ideias heterodoxas (e irreais), ele acaba expulso do movimento sionista. Sai com a pecha de traidor: reaparece o tema de Judas.
Há apenas um capítulo em que Judas, o próprio, aparece como personagem — fica a sugestão de que se trata de um escrito de Shmuel, mas isso não é dito explicitamente. Na versão do romance, Judas não vendeu Jesus por dinheiro. Preço médio de um escravo então, trinta moedas de prata não representariam muito para um homem de família rica. Ele seria, na verdade, o mais fervoroso dos seguidores de Jesus: acreditava que seu mestre era mesmo o Messias e que desceria da cruz, à vista de todos, para instaurar uma nova era de paz sobre a Terra. Não é, como o próprio Oz diz, o que “os meninos católicos ouvem na escola”. Mas não há aqui nenhuma iconoclastia barata: o escritor afirma que a figura de Jesus lhe inspira fascínio e admiração, e isso de fato transparece na narrativa.
O centro da história, porém, está no presente, na improvável mas genuína relação de afeto (eventualmente algo mais do que isso) que se estabelece entre Shmuel, Atalia e Guershom Wald. “Um pequeno milagre acontece ali”, disse Oz na entrevista. É um romance sutil, delicado, sustentado mais pela lenta composição de personagens do que por grandes viradas de enredo. E, embora não se recuse a mergulhar na história, recente (Micha morre nos conflitos que se seguiram à independência de Israel) ou de longo curso (a associação antissemita entre Judas e o povo judeu é extensamente discutida), o livro conquista o leitor de fato pela frágil e comovente humanidade de seus três protagonistas. Haverá outras vozes da razão em Israel — mas nenhuma outra voz capaz dessa narrativa.
Não se vira a outra face
Respeitada voz pública nos debates sobre o conflito israelo-palestino, o escritor Amós Oz deseja a paz — mas não quer conversa com o Hamas, grupo terrorista que governa GazaDurante a guerra em Gaza, em julho e agosto, o senhor disse que a ação militar israelense foi “excessiva mas necessária”. Por quê? Quando Israel é bombardeado por uma chuva de mísseis, não se pode esperar que o país ofereça a outra face. Mas não era necessário destruir tantas casas em Gaza para repelir a agressão do Hamas. Isso poderia ter sido realizado de forma mais sutil e cautelosa.
Qual a perspectiva de paz duradoura? A razão profunda da tragédia em Gaza é o desespero. Quando eu era criança, minha avó me disse: “Nunca lute com um garoto que não tem nada a perder”. É vital para Israel que Gaza deixe de ser esse garoto. Acredito que, se um Estado palestino existir na Cisjordânia, próspero e em paz com Israel, as pessoas de Gaza terão tanta inveja que derrubarão o Hamas. Traço esta linha: simpatizo com o sofrimento do povo de Gaza, mas desprezo o Hamas. Não pode haver solução de compromisso com quem prega o fim de Israel.
Qual a chance de uma solução de compromisso entre as atuais lideranças de Israel e da Autoridade Palestina? Não votei nem votarei no primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Seu governo é intransigente. Faltam-lhe empatia e imaginação, necessárias para a resolução de conflitos. E as mesmas qualidades faltam à Autoridade Palestina.