terça-feira, 18 de março de 2014
A tortura
Todas as guerras são sujas e não há justificativa que consiga amenizar o estado de selvageria e barbárie que produzem. São promovidas para subjugar o inimigo, se necessário exterminá-lo, com o mais alto grau possível de extermínio e terror, porque a repercussão e a propaganda integram o cenário composto para intimidar o inimigo, tornam-se componentes vitais do método.
Desde sempre onipresente nas relações de dominação, a tortura é, de longe, lugar comum em todas as culturas. Em períodos de paz se faz implícita, sutil, mas nos tempos de guerra, encontra terreno fértil e passa a se constituir no idioma comum a vencidos e vencedores. Seu objetivo é humilhar o prisioneiro, reduzi-lo a algo semelhante a vermes e traças, uma sevandija sem forma e identidade, aquebrantando a têmpera para que, na sequência, informações e confissões sejam obtidas.
Na história da humanidade jamais se tratou de impor, simplesmente, a tortura ou a pena capital, mas torná-las as mais dolorosas e lancinantes possíveis. Daí a sucessão de métodos e instrumentos de martírio e suplício, imprimindo ‘evolução’ na capacidade de impor dor e humilhação: roda, ebulição até a morte, esfolamento, esventramento (abrir o ventre da vítima e extrair seus órgãos internos), crucificação, empalação, esmagamento, apedrejamento, morte na fogueira, desmembramento, serração, escafismo, o colar (técnica de linchamento que consiste em colocar um pneu em volta do pescoço ou do corpo do supliciado e, em seguida, atear fogo ao pneu)...
A Grécia antiga, berço da civilização ocidental, não nos legou somente democracia e cultura, mas também o touro de bronze, instrumento de tortura atribuído a Fálaris, nos idos do século 6 a.C.: uma esfinge de bronze oca no formato de um touro mugindo, com duas aberturas, no dorso e na boca. No interior, um canal semelhante à válvula móvel do instrumento musical Trompete, ligava a boca ao interior do Touro. Colocada a vítima, a entrada da esfinge era fechada e posta sobre uma fogueira. À medida que a temperatura aumentava no interior do Touro, o ar ia ficando escasso, e o executado exasperado por uma forma de respirar, recorria ao orifício na extremidade do canal. Os gritos ensandecidos do executado saíam pela boca do Touro, fazendo parecer que a esfinge estava viva.
Só com o Humanismo, no século XVII, esta tendência institucional começou a declinar. A Declaração de Direitos de 1689, na Inglaterra deu um impulso para a abolição das penas cruéis. Mas, só em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ocorreu a proibição da tortura por todos estados membros da ONU, compromisso que sabemos, se restringe aos tratados e protocolos.
As cadeias e presídios brasileiros são centros de referencia em tortura. Com frequência são denunciados pela imprensa e organizações internacionais de defesa dos direitos humanos. Os relatórios da Anistia Internacional estão sempre denunciando o aumento da violência policial no Brasil numa escala comparável aos abusos característicos dos períodos de guerra generalizada.
Neste setor, os brasileiros inovam, trafegam com expertise e conhecimento de causa, com desmedida criatividade. O “pau de arara” é um ‘primor’ da invencionice nacional. Aqui inventado, logo recebeu certificação de qualidade, sendo exportado para todos os rincões do planeta – inclusive para o mundo desenvolvido.
Em nenhuma outra época a tortura foi utilizada de forma tão massiva quanto no período em que os nazistas se impuseram, no mundo. No holocausto, seis milhões de judeus foram exterminados nas câmaras de gás, no que os nazistas denominaram “solução final do problema judeu na Europa”.
Mas o que surpreendeu o mundo civilizado foi o resgate, em alto estilo, da prática da tortura, efetuado por nada menos que os EEUU, país que – dadas as suas características intrínsecas – é o país líder da missão de livrar o mundo do terrorismo, do arbítrio e das ditaduras. Não faz muito tempo, um furo jornalístico da rede de televisão CBS, desnudou fotos e imagens de prisioneiros iraquianos sendo torturados, ajudando a pulverizar a imagem de “mocinhos” que os norte americanos sempre desejaram acalentar.
O Presídio de Abu Ghraib, em Bagdá, foi o cenário escolhido por Saddam Hussein para humilhar e torturar seus compatriotas. Com uma parafernália de instrumentos de suplício que envolvia máquina de triturar elétrica e imersão em óleo fervente, nada menos que seis mil iraquianos eram executados por ano, só neste presídio.
Quando o governo americano se viu flagrado mentindo sobre a existência de armas de destruição em massa, utilizou o terror recorrente – por duas décadas - em Abu Ghraib para tentar construir um novo pretexto que justificasse a invasão: “libertar o povo iraquiano da repressão desumana de Saddam”.
Para o observador medianamente atento, quando o assunto é tortura, a máscara do “bandido” sempre cai bem no rosto das elites dirigentes, e com os norte americanos, o fato tem se repetido.
Nos duros anos da ditadura brasileira, o governo norte americano chegou a despachar para o Brasil e demais países do cone sul, instrutores militares especialistas em “práticas não convencionais de interrogatórios”. Um deles, Dan Mitrione, se notabilizou pela desenvoltura. Os demais países desenvolvidos não ficaram para trás. A França, por exemplo, ‘contribuiu’ com o general Paul Aussaresses, acusado de disseminar a tortura na guerra da Argélia, e também acusado de treinar torturadores das antigas ditaduras latino-americanas, durante o período em que esteve adido militar da França no Brasil,
Como um ente acima do bem e do mal – desconsiderando inclusive a Convenção de Genebra - os diversos governos vêm, sistematicamente, torturando e infringindo maus tratos a seus prisioneiros.
Sobre a ilha de Guantânamo, onde os EUA mantêm, encarcerados, prisioneiros da Guerra do Afeganistão, o próprio presidente Barack Obama assim se manifestou: “É fundamental que entendamos que Guantánamo não é essencial para a segurança dos Estados Unidos", disse Obama, para complementar, "Devemos fechá-la."
Quando da entrada do sexto ano na Casa Branca, o presidente da nação mais poderosa do planeta proferiu o novo discurso do Estado da União: “O combate ao terrorismo não deve ser feito apenas com meios militares, mas também por nos mantermos fiéis aos nossos princípios constitucionais, servindo de exemplo para o resto do mundo”.
O que as imagens flagraram no Iraque são cenas terríficas, de soldados americanos promovendo estupros e afogamentos em prisioneiros iraquianos no pior, mais grave e abominável ato de covardia que um ser humano pode perpetrar contra outro.
Os Estados Unidos estão numa encruzilhada, similar a que experimentaram no Vietnã. Na Ásia, começaram a perder a guerra quando a opinião pública norte americana entrou no jogo. É importante que tenham aprendido a lição. Porque a história costuma açoitar os que ignoram acontecimentos passados. O presidente Obama, ao menos parece ter assimilado o ensinamento.
Antônio Carlos dos Santos, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da metodologia de teatro Mané Beiçudo.