A cultura e as
artes têm papel fundamental na consolidação democrática do País e no
enfrentamento de questões urgentes.
As relações sociais precisam
ser qualificadas por meio do fomento a valores civilizatórios e democráticos e
o potencial emancipatório da cultura é elemento a ser estimulado. Expandir os
limites do possível, vislumbrar futuros possíveis e não apenas responder às
urgências do presente com um horizonte já dado e limitado, mas operar com
criatividade, labilidade, crítica e experimentação, predicados inerentes às
artes e à cultura. Como propõe Rodrigo Nunes, no livro Do transe à vertigem:
Ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição, “articular propostas ao
mesmo tempo radicais e plausíveis que se conectem à experiência vivida da
maioria das pessoas”.
Qualquer transformação que
se deseje operar implica levar em consideração as bases culturais da sociedade.
Uma definição possível de cultura: muitas formas de organizar o social. Ou,
como propõe Stuart Hall, em Da diáspora: identidades e mediações culturais:
“são práticas vividas que capacitam uma sociedade, grupo ou classe a
experimentar, definir, interpretar e dar sentido às suas condições de existência”.
As dinâmicas culturais
contemporâneas são fruto da efervescência de práticas alavancadas por grupos
diversos vinculadas a questões de gênero, raça, etnias, classe, território,
cosmologias, dentre outras; espaço conflituoso em que a invenção coletiva de
valores, símbolos, comportamentos e ideias evidencia a multiplicidade de
sentidos e a disputa em torno de pautas e epistemologias diversas. Cultura,
portanto, é complexidade.
Assim sendo, seu
entendimento não se conforma mais a um conceito central, restrito, linear,
hegemônico, singular, único e menos ainda estabelece uma relação exclusiva ou
de identificação direta entre arte e cultura. Uma concepção complexa e poética
de cultura com as dúvidas, inquietações, questionamentos, estranhamentos que
ela provoca, seja na teoria ou na prática, extrapola essa “dependência” ou
exclusividade, procurando repensá-la a partir de um viés mais crítico, plural,
ampliativo, democrático, participativo, descentralizado e mutante. Em tal
conjuntura, a esfera da cultura é compreendida em tensionamento dentro das
dinâmicas socioculturais, tecnológicas, geopolíticas e econômicas
contemporâneas. A cultura configura-se, portanto, em campo/interface em
constante transformação, em processo, resultante da invenção coletiva e interativa
de ações, expressões, valores, símbolos, comportamentos e ideias, promovendo a
multiplicidade de sentidos e a disputa na arena pública em torno de pautas
múltiplas.
A cultura, ou melhor, a
interculturalidade, as artes, as ciências e outros saberes, exercem na
contemporaneidade papel fundamental na consolidação democrática e no
enfrentamento de questões urgentes no âmbito local, nacional, assim como
planetariamente. Muitos são os desafios, como claramente expostos pelos 17
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “Um apelo global à ação para
acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as
pessoas, em todos os lugares, possam desfrutar de paz e de prosperidade”. As
bases culturais de uma sociedade são determinantes para a formulação de
qualquer transformação que se deseje operar. A contribuição neste sentido é
prioritariamente plural, coletiva e em rede.
Cabe destacar que entendemos
a interculturalidade como conceito que define uma perspectiva, descreve
processos e estimula práticas de interação entre culturas que reconhecem as
diferenças e trabalham em favor da eliminação das desigualdades. A noção põe em
evidência as interseções múltiplas (de etnia, classe, gênero, nacionalidade
etc.) que permeiam as relações entre configurações culturais e supõe,
sobretudo, um diálogo entre culturas que não justifica nem reforça as relações
de subordinação, antes, assume o compromisso de reconhecer as desigualdades e
implementar políticas destinadas a reduzi-las.
A complexidade cultural
também se relaciona aos rumos traçados pelas tecnologias, não só as
computacionais, que são dominantes, mas aquelas, tantas outras, desenvolvidas
por outras etnias, cosmologias, como em outros contextos, territórios e
dinâmicas socioculturais.
A menção às redes evoca a
figuração da internet, idealizada para conectar todos a tudo. No entanto,
passadas algumas décadas da sua criação, é urgente atuar criticamente frente às
dinâmicas de sua privatização e concentração por grandes conglomerados. A
construção, atualização e manutenção de redes – não só a internet –
verdadeiramente distribuídas e democráticas, em contraposição às formas que
atuam segundo o paradigma centro-periferia, estão na ordem do dia para as ações
tecnopolíticas na cultura e nas artes.
Frente à dominância das
redes centralizadas – das estruturas de governo e gestão, e de apropriação do
comum – é fundamental que sejam propostos novos paradigmas. Sua
descentralização, incorporando a lógica das redes distribuídas, que germinam
ramificações entre coexistências, é uma condição-chave nesse processo.
Sensibilidade espaço-temporal e atuação simultaneamente sistêmica e situada são
características dessas redes complexas que se pode imaginar como rizomas do
comum, necessariamente interculturais e participativas.
O adensamento do processo de
democratização está interconectado à participação cada vez maior e mais ativa
da sociedade na arena pública e na tomada de decisões. Não se trata de simples
consulta ou de criação de conselhos consultivos, mas conselhos deliberativos,
de efetiva tomada de decisões. De maneira sintética, fazer com e não fazer
para. Atacar as estruturas de exclusão exige que os beneficiários das políticas
públicas se tornem sujeitos e não simples objetos da ação pública. A cultura e as
artes têm papel fundamental para que tal perspectiva se consolide.
É preciso assumir, como
ponto de partida, que a cultura “é o flexível” (como diz Michel de Certeau, em
A cultura no plural) e será sempre um campo de incertezas; está em permanente
construção pela prática coletiva de seus membros, configurando-se em esfera de
conflito, performativa, interativa, que promove a experiência do diverso, a
capacidade de afetar e ser afetado, o que se produz pela negociação com as
diferenças, a invenção de outros formatos de agenciamento produzidos pela
expansão das vozes, dos desejos e das demandas.
Uma questão central para a
ação no campo da cultura é, portanto, a restauração e a ampliação das
instâncias de participação e de incentivo aos processos coletivos, extintos ou
enfraquecidos, fortalecendo sua institucionalidade. Igualmente importante é
investir na estruturação de arquiteturas de encontro e de diálogo intercultural
que permitam aos diferentes sentidos, que produzem sujeitos e grupos, espaços
de circulação e disputa na arena pública.
A diversidade cultural, o
fazer coletivo, a troca de saberes e a ampliação da esfera do ser são elementos
orientadores da agenda a ser proposta, bem como o incentivo à formação de
redes, tendo por base os nexos destacados, a saber: descentramento,
interculturalidade e participação. Alguns indicativos para políticas, programas
e ações, pensados de maneira integrada, estruturam o desenho inicial de nossa
proposta, ainda em processo, de maneira a abarcar a cultura em sua complexidade:
dimensão econômica; gestão administrativa; infraestrutura de equipamentos
culturais; patrimônio e memória; formação cultural e artística; fomento à
cultura em sua diversidade; inovação científica e tecnológica.
Por fim, o estreitamento das
relações entre Universidade e Sociedade buscado pelo programa Eixos Temáticos
deve ser compreendido como via de mão dupla; em outras palavras, que as
reflexões e propostas endereçadas à sociedade interpelem também a Universidade.
Jornal da USP, por integrantes do Eixo
Temático Cultura e Artes, professores de diferentes unidades da USP
O Eixo Cultura e Artes é
formado pelas professoras e pelos professores: Ana Cecília Arias Olmos, da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Claudio
Mubarac, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, David Sperling, do
Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, Esther Império Hamburger, da
ECA-USP, Gabriela Pellegrino Soares, da FFLCH-USP, Lucia Maciel Barbosa de
Oliveira, da ECA-USP, Márcia Lima, da FFLCH-USP, Martin Grossmann, da ECA-USP,
Silvana Nascimento, da FFLCH-USP, Maurício Pietrocola Pinto de Oliveira, da
Faculdade de Educação (FE) da USP, e Rosenilton de Oliveira, da FE-USP.
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