Milhares de sertanejos, seguidores de Antônio Conselheiro e suas
promessas messiânicas, acabaram dizimados pelo Exército. Mais de um século
depois, vulnerabilidades da população rural persistem, apontam historiadores.
Foi um chacoalhão e tanto na República, ainda bastante
jovem. Entre 1896 e 1897, entraram em conflito armado o Exército brasileiro e a
comunidade liderada pelo líder messiânico Antônio Vicente Mendes Maciel
(1830-1897), mais conhecido como Antônio Conselheiro, no sertão da Bahia. A
Guerra de Canudos teve sua primeira batalha há exatos 125 anos, em 24 de
novembro de 1896.
"Canudos foi o primeiro grande movimento social de
contestação da ordem republicana, que provocou derrotas humilhantes para as
autoridades brasileiras", define o historiador Paulo César Garcez Marins,
pesquisador do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP).
"Foi uma demonstração de quanto a população
sertaneja, distante das grandes cidades do litoral, poderia forjar uma
experiência política e social de grande envergadura, capaz de afrontar o
sistema político e também as redes de poder locais e regionais."
Em um contexto de seca, latifúndios improdutivos e
muito desemprego, milhares de sertanejos não pestanejaram em seguir Antônio Conselheiro,
cujas pregações mesclavam religião e crítica social e se apoiavam na crença de
uma salvação milagrosa. Logo, os rumores passaram a ser de que o grupo se
preparava para atacar cidades vizinhas e teria um ousado plano de depor o
governo republicano e reinstaurar a monarquia no Brasil. E o Exército
brasileiro não conseguiu conter os revoltosos facilmente — ao contrário,
amargou algumas derrotas.
"Canudos é, e já era para seus contemporâneos, um
espanto e uma evidência da força do povo sertanejo, que tentava construir uma
outra experiência urbana, econômica, social e política, que escapasse dos
quadros tradicionais do mandonismo político das elites regionais do que hoje
chamamos Nordeste", analisa Marins.
"O fato de ter, inclusive, derrotado três vezes as
tropas enviadas para sua subjugação, colocara a própria autoridade nacional, e
o Exército brasileiro, em questão, o que sinalizava a fragilidade institucional
do novo regime republicano e também sua brutalidade, dado o elevadíssimo número
de mortes e execuções no momento em que finalmente se venceu."
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A guerra terminaria apenas em outubro de 1897, na
quarta incursão dos militares em Canudos — no total, foram mobilizados 12 mil
soldados. O saldo final foi o vilarejo incendiado e quase toda a população
executada — estima-se que tenham sido 25 mil mortos. Conselheiro, o líder,
havia morrido um mês antes, provavelmente em razão de ferimentos decorrentes da
explosão de uma granada.
Revelação
das mazelas rurais brasileiras
Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor
na Universidade Estadual Paulista (Unesp), "Canudos foi uma
revelação", e aí reside sua importância histórica.
"De um lado revelava-se uma população, uma
paisagem e as duras condições de vida e de trabalho, marcadas pela pobreza extrema,
a opressão, a violência e a exploração intensiva da mão de obra pelos grandes
proprietários rurais", analisa.
"De outro, o desconhecimento, a indiferença, o
preconceito e a discriminação de autoridades civis e militares e da elite
cultural e econômica sobre a realidade social do Brasil em sua primeira década
de regime republicano", pontua. "A ausência e a manipulação de
poderes e de serviços públicos colocou em evidência o caráter oligárquico e
autoritário dos governos republicanos, em escala nacional, regional e
local."
Na época, o discurso oficial era de que os revoltosos
representavam um risco para o regime republicano e a própria ordem econômica e
social da nação. À medida que o Exército sofria derrotas em Canudos e
percebia-se uma dificuldade de extinguir o movimento, ressentimentos foram
acumulados. O objetivo passou a ser um só: "a aniquilação material, social
e política" do grupo — nas palavras de Martinez.
Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie, o
historiador Gabriel Leite Neres avalia que Canudos, embora tenha sido uma
guerra relativamente curta, "representou as contradições e tensões de um
Brasil em processo de construção".
"Foi a primeira convulsão social histórica que
demonstrou os abismos do período", acrescenta. "A crise de partes da
sociedade devido às políticas realizadas pelo regime oligárquico apresentou não
um Brasil, mas sim brasis divididos espacialmente."
Sedimentada pelo tempo, a guerra ganhou uma compreensão
historiográfica contemporânea — passou a
ser vista dentro de um contexto de insurreições rurais que ocorreram ao longo
de toda a segunda metade do século 19.
"É um fato sempre lembrado e muito referido pelo
que trouxe ao Brasil e ao mundo naquele momento: a espoliação das populações
rurais, a privação que esta sempre enfrentaram na garantia de suas posses,
roçados e criações, a exclusão de direitos básicos de cidadania, a começar pela
assistência social, direitos trabalhistas e autonomia política", diz
Martinez.
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Para o historiador, atualmente "Canudos reaparece
sempre como o retrato de uma situação que perdurou no tempo e no espaço,
lembrando o quanto essa população rural sofreu e sofre nos dias de hoje com a
violência social e estatal, as migrações forçadas, as más condições de vida e
de trabalho, o desamparo governamental e a exploração de suas fragilidades e
necessidades pela manipulação política, ideológica e eleitoral".
Consciência
social
Nesse sentido, a revolta simboliza também uma maneira —
ainda que originalmente caracterizada como uma seita — de conscientização
social. E, conforme atenta o historiador, as privações e vulnerabilidades da
população pobre rural não mudaram muito nesses 125 anos, a despeito da
modernização da economia agroindustrial.
"[Na verdade, esta] apenas reitera e aprofunda o
cenário trágico de pobreza, de violação de direitos e de cidadania",
enumera Martinez.
Para Marins, vale ressaltar que a "rápida
mobilização" dos que atenderam ao chamado de Conselheiro proporcionaram um
movimento de crescimento "rápido e eficaz, ainda hoje sem paralelo no
país".
Traços do que motivou Canudos seguiram reverberando em
episódios de lá para cá, como a marcha da Coluna Prestes, o cangaço, as Ligas
Camponesas e, mais recentemente, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).
Edison
Veiga, Deutsche Welle
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