Publicar o primeiro livro é um desafio para um escritor estreante, e em tempos de recessão econômica pode se tornar uma missão impossível. Esse teria sido o destino da escritora Martha Batalha, não fosse por um detalhe: "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", sua primeira obra, chamou a atenção de diversas editoras no exterior e teve os direitos comprados para o cinema. Tudo isso antes mesmo de ser publicado no Brasil, onde foi recusado pelos grandes grupos editoriais até ser adquirido pela pequena Companhia Editora Nacional e, mais tarde, passar à Companhia das Letras, que acaba de enviá-lo às livrarias.
"O livro demorou muito tempo para ser aceito no mercado brasileiro. E acho que a culpa não foi do mercado. No ano passado, como esse ano também, o mercado editorial estava em uma super-crise. A maior parte das editoras não estava aceitando novos autores, estava todo mundo tentando se segurar", conta ela, explicando que o corte de gastos do governo teve um grande impacto nas editoras, que têm no poder público um de seus maiores compradores.
Martha, 42, fala com conhecimento de causa: jornalista, ela abandonou as redações em 2003 para fundar a editora Desiderata, responsável por publicar a antologia do jornal satírico "Pasquim" e os livros de seus antigos colaboradores, como Millôr Fernandes, Jaguar e Ivan Lessa. No final de 2007, a editora foi vendida para o grupo Ediouro e Martha mudou-se para os Estados Unidos para cursar um mestrado em editoração e recomeçar a vida ao lado do atual marido, porto-riquenho.
Seu sucesso contou com a ajuda de outra profissional experiente, a agente Luciana Villas-Boas, da Villas-Boas & Moss, nome de peso na representação de autores brasileiros. Em meio à rejeição das editoras nacionais, foi ela quem começou a oferecer o livro para casas estrangeiras e fechou o primeiro negócio com a alemã Sührkamp, que fez uma proposta acima do valor de mercado para evitar que o livro fosse a leilão (prática conhecida no mercado editorial como "pre-empt offer"). Em outubro de 2015, veio a Feira do Livro de Frankfurt, e o interesse internacional aumentou: até agora, "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão" já foi vendido para dez países, incluindo Alemanha, Itália, Portugal, França e Holanda.
Cinema
Antes de Frankfurt, Luciana também já havia conseguido um contrato de adaptação para o cinema. Ela ligou para o produtor Rodrigo Teixeira, um dos expoentes do cinema nacional, conhecido por seu grande interesse em adaptar livros para as telas, e disse que tinha uma obra especial para ele avaliar. Rodrigo leu, se interessou e a adaptação já está em desenvolvimento, com direção de Karim Aïnouz ("Praia do Futuro") e filmagens previstas para o início de 2017.
"O livro me interessou porque é muito próximo a situações que eu conheço", conta o produtor. Com a trama estendendo-se dos anos 1940 ao início dos anos 1960, "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão" narra as histórias de duas irmãs de classe média no Rio de Janeiro, Eurídice e Guida, em meio às condições adversas que a sociedade reservava às mulheres na época.
Leia trecho do primeiro capítulo de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão"
"Eu vi mulheres muito parecidas com elas. Tias, avós, pessoas próximas à minha mãe, que tiveram realidades similares ao que essas mulheres viveram", completa Rodrigo. Sobre a escolha de Karim, ele diz que, assim como ele próprio, o cineasta viveu em uma família de mulheres e se "sensibiliza mais com esse tema da condição da mulher". "Foi uma coincidência até trágica, porque a mãe dele vinha de uma fase muito doente, ele leu esse livro, se apaixonou por ele, e a mãe dele morreu logo depois", conta.
Reviravoltas
Em meio às reviravoltas, o livro acabou também mudando de mãos no Brasil. "A editora que estava trabalhando comigo [na Companhia Editora Nacional] foi demitida, também por causa da crise. Aí eu conversei com a Luciana e disse que não tinha segurança para continuar lá", conta Martha.
A esta altura, a carreira internacional do livro já havia chamado a atenção da Companhia das Letras. "Eu me interessei ouvindo o resumo entusiasmado da Luciana Villas-Boas, e especialmente pela temática feminista", conta Sofia Mariutti, editora do livro na Companhia das Letras. "Acho que o livro chama a atenção por ter uma estrutura tão sólida, e também por trazer algumas curiosidades e reconstruir a história do Brasil do fim do século 19 e do começo do 20", acredita.
Para Martha, este também foi um dos motivos que fez com que tantas editoras internacionais se interessassem por seu trabalho. "Quando eu procurei a Luciana para me representar, disse que queria muito ser lida no Brasil. E a maior das ironias foi que eu fiz uma história que é absolutamente local, e que está fascinando os editores estrangeiros. Acho que justamente porque eles têm muita curiosidade de saber como é o local no Brasil, como é o dia a dia aqui", acredita a escritora. "Mas em momento nenhum escrevi essa história pensando no público estrangeiro".
Feminismo
Além do retrato de um Rio de Janeiro de outra época, uma das características mais marcantes do livro de Martha é um sutil ponto de vista feminista, que desde as primeiras páginas aponta com ironia e humor como a mulher era (e continua sendo) submetida a condições absurdas, independentemente da situação econômica.
"Eu sou uma pessoa muito indignada com todas as injustiças --do Brasil, do dia a dia, de classe social, de tudo. Quando fui escrever, entendi que tinha que escrever sobre as injustiças que eu mais conhecia, que é essa injustiça que a gente vê acontecer o tempo todo e às vezes nem percebe, essa questão das mulheres. Eu sou uma mulher de classe média, de uma família tradicional do Rio de Janeiro, da Tijuca. Essa é a minha perspectiva, acho que tenho que escrever sobre essas coisas.", explica a autora.
A editora do livro, Sofia Mariutti, também ressalta esta característica da obra. "O livro bateu na porta no momento perfeito, com as narrativas feministas ganhando tanta força no Brasil", diz. "Acho que ainda falta olhar para a nossa história e recriá-la com o olhar das mulheres de hoje. A Martha foi atrás de pesquisar e recriar as histórias das nossas avós. Não eram tantas que escreviam naquela época e que podiam contar sua versão das coisas, então é quase um dever das mulheres de hoje recontar essas histórias".
Segundo Martha, a ideia para o livro, além de inspirada por histórias de sua família, veio de uma hipótese: "Fiquei imaginando o que aconteceria com uma mulher brilhante se ela nascesse nesse tempo e nesse lugar. Na verdade, é algo que aconteceu muito, de você ter mulheres perfeitamente capazes e com energia para produzir e que não puderam se realizar naquela época". É o caso de Eurídice, mulher inteligentíssima confinada em um casamento que não é mau, mas também não lhe permite realizar suas aspirações --sejam elas na cozinha, na costura ou na literatura.
Essa hipótese levantada por Martha liga "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão" a uma linhagem de escritoras que trataram da mesma questão no passado, de Virginia Woolf e Clarice Lispector a, mais recentemente, a italiana Elena Ferrante. Mas essas são apenas algumas das influências de Martha. "O que Virginia Woolf fala sobre as mulheres na literatura [no livro 'Um Teto Todo Seu'] é um clássico. Mas a Elena Ferrante eu li depois que meu livro estava pronto e fiquei impressionada com como as histórias se parecem. Mas como influência, em termos de estilo, acho que tem muito do Gabriel García Marquez, essa coisa de ter muitas histórias para contar. E tem outros autores que me influenciaram muito nos últimos anos, como o Jonathan Franzen --pelo pragmatismo dele de escrever--, a Alice Munro, a Jhumpa Lahiri... A trajetória das duas irmãs no livro tem muito de 'Razão e Sensibilidade', da Jane Austen".
O livro de Martha chega em um momento em que o mercado editorial parece se abrir para tirar a literatura feita por e sobre mulheres do nicho em que a havia colocado, vendendo apenas os autores homens como "universais". Exemplo disso são os dois prêmios Nobel concedidos a mulheres nos últimos três anos --Alice Munro e Svetlana Alexievich. No Brasil, A Flip, principal evento literário do país, terá novamente uma mulher homenageada depois de 11 anos --a poeta Ana Cristina César.
"É uma injustiça danada. Philip Roth é universal, Paul Auster é universal, mas Elena Ferrante escreve para mulher", aponta Martha. "Se você for ver, o número de mulheres que ganharam o prêmio Nobel é mínimo. Acho que o mercado é muito masculino nesse sentido. Mas uma coisa é certa: a maioria dos leitores é mulher, no Brasil e no mundo todo. Acredito que o tempo vai colocar todo mundo no lugar certo. Acho que está mudando".
Sofia Mariutti concorda. "Esse movimento não é organizado, mas é inevitável. As editoras se atentam aos temas que estão movimentando as pessoas, então não dá mais para fugir do feminismo. E o nosso papel nessa hora como mulheres é usar o nosso crivo para filtrar o que tem de bom. Eu tenho lido quase só livros de mulheres, mas isso não quer dizer que só por ser mulher ou ter mulher como protagonista vai ser publicada, precisa ter excelência", opina.
Rodrigo Teixeira também acredita que há espaço para histórias sobre mulheres no cinema, coisa que a indústria americana já explora há algum tempo, com filmes como "As Horas", "Tomates Verdes Fritos", "Thelma & Louise", "Carol" etc. "Tanto tem espaço que esses filmes todos tiveram alguma representatividade no Brasil. Acho que existe uma preguiça muito grande de se apostar em novos gêneros no Brasil, falta investir em outros caminhos, e esse é um caminho que eu acredito. No cinema americano foi um super-sucesso. É só ter coragem de pegar essa história para acontecer", conclui.
Enquanto a adaptação cinematográfica de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão" não sai, Martha já está finalizando um segundo livro, que também deve ter uma pitada de feminismo. "São cem anos de uma família que mora em Ipanema, e na verdade é uma metáfora para a classe média brasileira. O livro começa com a construção de um castelo que de fato foi construído em Ipanema em 1904, e o que acontecia nesse castelo", conta. "E também tem uma empregada que tem uma relação interessante com a protagonista. Porque, se você vai escrever literatura e quer que o público brasileiro se identifique, você tem que falar sobre a questão das empregadas domésticas, sobre esse tipo de coisa".
Por Natalia Engler - UOL
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