Durante a Primeira Guerra, centenas de milhares de armênios foram assassinados pelas forças otomanas. Em "The cut", estreado em Veneza, o cineasta turco-alemão toca fundo num tabu nacional da Turquia.
The cut (O corte), de Fatih Akin, foi estreado na mostra competitiva do Festival de Cinema de Veneza 2014 no último fim de semana: primeiro à imprensa internacional, em seguida a convidados dos setores da cultura, política e economia.
Na soirée de gala, a imagem das damas de vestido longo e cavalheiros de smoking em ambiente festivo não combinava, absolutamente, com o que se viu na tela, ao longo de duas horas. Pois a produção propõe um mergulho num capítulo profundamente obscuro da história turco-armênia.
Tendo como pano de fundo o genocídio de centenas de milhares de armênios durante a Primeira Guerra Mundial, perpetrado sob as ordens do Império Otomano, Akin conta a história de um pai armênio desesperado, à procura de suas duas filhas. A produção não poupa as cenas de crueldade, com claras indicações sobre a gana homicida dos soldados turcos.
Política antes da arte
Após a première em Veneza, as reações não foram exatamente entusiásticas. Mas, enquanto a imprensa especializada se mostrou predominantemente desapontada, houve ressonância positiva entre o público da apresentação de gala. Alguns espectadores se revelaram abalados pelas cenas mostradas.
Falando à DW, Fatih Akin afirmou que as primeiras reações dos profissionais da mídia turca foram positivas para ele. Ele sentiu forte entusiasmo por parte de certos colunistas, e estes "têm grande influência na Turquia", explica. "Eles não se ocupam tanto assim da cinematografia, não são críticos de filme no sentido clássico, mas sim colunistas políticos das mais diferentes alas."
O cineasta turco-alemão deixa claro que, para além da recepção da crítica, com base no valor estético de seu filme, o mais importante para ele é a temática tratada. Considerando-se que o genocídio dos armênios é tabu até hoje na Turquia, o otimismo de Akin surpreende: ele não tem dúvidas de que The cut será também exibido no país.
"O tom básico [entre os colunistas] é o mesmo: esse filme pode ser mostrado na Turquia sem reservas, ele precisa ser mostrado na Turquia", descreve o diretor. Isso o alegrou muito: "Meu maior sonho é que ele entre na programação regular dos cinemas da Turquia."
Tentativa de processar um trauma
Ao realizar The cut, Akin tinha duas grandes preocupações. "Para mim era importante que o espectador turco possa se identificar inteiramente com o protagonista, que, afinal, é armênio": essa era sua meta principal.
A segunda é "que um armênio que assista ao filme, naturalmente também se identifique com o herói armênio e aceite o filme", sobretudo sendo ele da autoria de alguém de origem turca. Os pais de Fatin Akin emigraram em meados da década de 1960 para a Alemanha, ele mesmo nasceu em Hamburgo, em 1973.
"O filme é a tentativa de processar um trauma", diz o cineasta, e filosofa: "o que fazemos, como indivíduos, quando temos um trauma? Vamos ao psiquiatra, nos deitamos no divã, fazemos uma análise e refletimos sobre o nosso trauma."
Com um pouco de sorte, a pessoa se liberta do trauma e consegue lidar melhor com ele. Seu filme, portanto, é a oferta a um amplo público para que trabalhe o trauma do genocídio dos armênios. "O que vale para o indivíduo, vale também para o coletivo", pontifica.
Após a apresentação de gala, alguns armênios na plateia enfatizaram como é importante que o tema tenha sido finalmente tratado. O ator Simon Abkarian, que participou da produção, comentou na coletiva de imprensa: "Este é o filme pelo qual nós, armênios, estávamos esperando."
Como levar o genocídio à tela?
Parte da crítica apontou falhas dramatúrgicas em The cut, acusando-o de não conseguir se decidir entre o drama histórico-político e o filme de gênero. Akin diz não concordar que se classifique seu trabalho apenas como um filme político sobre o assassinato em massa dos armênios.
"Na verdade, eu não sei o que é genocídio. Que gênero cinematográfico é esse? Que meios se deve usar? Será que um filme pode sequer fazer jus a algo assim?", indaga o diretor. E conclui: "quem só quiser saber algo sobre o acontecimento, é melhor que rode um documentário."
Ele narrou uma história que começa durante o genocídio, prossegue Akin, mas que também é "uma tragédia, uma aventura, um western, um drama, um épico". Essa foi sua intenção, desde o início. "Eu precisava contar uma história, universal, simples." Portanto decidiu conscientemente relatar sobre um destino individual, "da maneira mais cinematográfica e convencional possível".
Essa abordagem popular certamente ajuda The cut em seu lançamento na Alemanha. Na Turquia, independente de sua autoconfiança, Fatih Akin teria motivos para temer a oposição por parte dos nacionalistas. Pois ele já foi ameaçado de morte antes: ao anunciar uma produção sobre o escritor armênio assassinado Hrant Dink, projeto que acabou tendo que abandonar.