Por Álex Vicente, no El País
Repli sur soi. Há anos que os franceses se autodiagnosticam com uma doença à qual se referem com esta expressão, onipresente nos meios de comunicação, e que poderia ser traduzida como "ensimesmamento", "autoisolamento" ou, literalmente, "recolhimento em si próprio". Isso reflete as atribuições de uma cultura que, até pouco menos de um século atrás, era dominante no planeta. Hoje, por outro lado, é afetada por seu narcisismo e autossatisfação, diminuída por um agravado déficit de influência e condenada pelaprofunda crise institucional vivida pela quinta maior potência mundial.
Os ideólogos deste declínio cultural se multiplicaram em uma década e meia. Eles dizem que a literatura francesa deixou de ser relevante lá pelo Nouveau Roman, movimento literário característico da década de 1950. Que os livros traduzidos do francês não representam sequer 1% do mercado anglo-saxão, enquanto quatro em cada 10 títulos publicados na França têm origem estrangeira. Que o cinema não rendeu nada de bom desde os tempos de Godard e Truffaut. Que os intelectuais franceses já não são estudados nas universidades — sentem falta de Sartre e Camus, ou de Proust e Balzac. Que os artistas franceses importam entre pouco e nada: na lista dos 100 nomes mais cotados que a Artprice acaba de publicar não há nenhum francês nascido depois 1945. Nos anos setenta, Yves Klein, Arman e Victor Vasarely estavam na lista dos 10 mais expostos no planeta – apesar deste último ter nascido na Hungria e desenvolvido sua obra na França.
Não faltam números, dados e opiniões para garantir que o panorama é quase catastrófico. Mas algo falha nesta inclemente explicação. Por que a cultura francesa continua sendo, além da balança comercial de compra e venda, uma referência no mundo? Por que os cidadãos franceses se agarram à cultura quase como fator diferencial? Por que seu orçamento não diminui apesar dos apertosfinanceiros que vivem? E como se explicariam, então, os dois prêmios Nobel concedidos este ano a Patrick Modiano e Jean Tirole, e ainda, para maior afronta, em dois campos supostamente irrelevantes na França atual, como a literatura e a reflexão econômica? A boa nova vinda de Estocolmo e sua hiperbólica visibilidade midiática fizeram com que essa teoria da decadência cambaleasse. "Depois de Patrick Modiano, outro francês no páreo: felicidades a Jean Tirole! Pequena surpresa para o French bashing", tuitou Manuel Valls ao saber do segundo prêmio. O primeiro-ministro se referia a esse suposto menosprezo sistemático pelo francês, do qual os cidadãos se dizem vítimas, embora não tenham dúvidas na hora de praticá-lo em ocasião oportuna, divididos entre o chauvinismo e uma nova tendência à autoflagelação.
O Le Monde escreveu um eufórico editorial após o Nobel de Modiano. "É uma prova de que a literatura francesa continua ardendo fora de suas fronteiras", defendeu. É apropriado interpretar tal fato como um renascimento? "O Nobel não está orientado pela ideia de recompensar a França, mas a ocasião nos permite questionar o que leva este país a se autodenegrir tanto. Sempre me pareceu uma doença nacional", respondeu Jack Lang, sentado próximo às gelosias que Jean Nouvel projetou para o Instituto do Mundo Árabe, do qual Lang é diretor desde 2013.
Antes, ele teve outra vida: foi ministro de Cultura de François Mitterrand entre 1981 e 1993. À frente dessa pasta, conduziu uma ambiciosa política dotada de um orçamento excepcional. Quando Lang assumiu o cargo, o Governo gastava 2,6 bilhões de francos em assuntos culturais; e ao deixá-lo em 1993, a quantia era seis vezes maior. Se o panorama cultural se transformou no que é hoje, sem dúvida foi graças a ele (ou por culpa dele). Lang se abriu às novas formas de expressão, da arte contemporânea à história em quadrinhos, e às culturas urbanas, além de ter acompanhado a mudança social representada pela chegada dos socialistas ao poder.
Lang não observa declínio cultural algum. "A política e a economia vão mal, mas o cenário cultural e intelectual, que ocupa todos os cantos da vida francesa não. Nosso país é aberto e universal. Existem outras cidades no mundo como Paris? Basta observar a programação de qualquer cinema, as traduções presentes nas livrarias ou os artistas que expõem em qualquer museu", afirmou. "Agrada-nos que nossa cultura viaje pelo mundo, mas não gostamos menos de acolher a de outros lugares. É isso que nos transforma em uma cultura rica". Lang está convencido de que a política cultural que fomentou, partidária de um Estado forte e intervencionista, continua sendo "mais necessária do que nunca" diante da hegemonia do mercado e da dependência crescente do mecenato privado.
A árvore que atrapalha a visão da floresta. Os pessimistas utilizam esta metáfora para afastar todo o triunfalismo. Para eles, os dois Nobel seriam a exceção que confirma a regra, igual ao fenômeno protagonizado este ano por Thomas Piketty, economista estrela e autor do livro O Capital no Século XXI, que teve 200.000 exemplares comercializados em todo o mundo. Imerso em um ofegante tour promocional, Piketty dá uma resposta que ecoa seu descontentamento: "O problema da França — e também da Europa — é seu Governo, e, em nenhum caso, sua cultura ou seus pesquisadores".
A imprensa americana, herdeira da secular relação de amor, ódio e respeito à França, também acha que uma árvore frondosa impede a clara visualização do que acontece. O The New York Times garantiu, há poucos dias, que as condecorações não fazem mais do que refletir "a estratificação entre uma pequena elite hipereducada e o resto do país". E, em 2008, a revista Time já havia semeado o pânico ao publicar uma capa com um título para escandalizar: A morte da cultura francesa.
Michel Onfray tem argumentos diferentes, mas seu ponto de vista também é negativo. "Acredita, de verdade, que o Nobel de Economia significa que a França dispõe de uma economia saudável? Ou que o de Literatura diz algo sobre o estado de nossa literatura?". Traduzido para 13 línguas, o filósofo criou, em 2012, a Universidade Popular de Caen, por meio da qual compartilha seminários gratuitos para democratizar o acesso à cultura. Em sua opinião, não existe um renascimento. "Para renascer, a França precisaria ter morrido, o que nunca aconteceu". Mas ele observa uma decadência. "Sua raiz se encontra no momento em que o socialismo abraçou o liberalismo, um regime em que o dinheiro dita a lei. É isso que ocorre hoje nas áreas de educação, saúde, segurança e trabalho, e também na cultura".
No entanto, é difícil encontrar vizinhos europeus para os quais a criação artística ocupe o mesmo espaço no imaginário coletivo, onde os debates intelectuais tenham a mesma importância e os orçamentos para a cultura a mesma proporção. Na França, o Ministério receberá sete bilhões de euros (21,8 bilhões de reais) em 2015, quantia à qual serão acrescentados outros 7 bilhões adicionais fornecidos por regiões e municípios. Na Alemanha, o orçamento federal para a cultura é de 1,2 bilhão de euros (3,7 bilhões de reais) – embora os Länder financiem a maior parte do orçamento, e o total se aproxime de 8 bilhões de euros (24,9 bilhões de reais). No Reino Unido, o Arts Council só recebeu o equivalente a 2,6 bilhões de reais este ano, após sucessivos cortes. E, na Espanha, a verba orçamentária de Cultura será de 749 milhões de euros (2,3 bilhões de reais) em 2015.
Nem sequer Nicolas Sarkozy, que tinha insinuado que suprimiria o Ministério da Cultura se assumisse o poder, se atreveu a realizar cortes de gastos quando assumiu a presidência. Enquanto o resto do continente fazia o setor minguar após a irrupção da crise, Sarkozy o aumentou em 20% durante seu mandato. Os boatos atribuíram tal atitude a seus amores por uma cantora, embora o motivo fosse puramente político. De demonstrar menosprezo por A Princesa de Clèves, leitura obrigatória para concursos públicos, Sarkozy passou a enumerar de cor a filmografia de cineastas neorrealistas. "E o que dizer de Dreyer? Ordet, Gertrud... E esse Bergman... Gritos e Sussurros é maravilhoso. Essas três mulheres... É duro, né? Vejo uma centena de filmes por ano", disse em 2010, com indubitável ostentação, perante um grupo de estudantes desconcertados. Ele entendia que defender esse patrimônio era inerente ao cargo que ocupava. Um espetáculo similar em qualquer outra latitude se adequaria melhor a uma obra de ficção científica do que à realidade.
Ao falarmos de cinema, cabe acrescentar que o francês reconquistou o primeiro lugar em termos de fração de mercado em 2014, subindo para 46,3% em setembro e superando os 45,7% do cinema americano, em parte, graças a uma série de incentivos estatais aprovados em caráter de urgência para corrigir os maus resultados do ano passado. Os franceses também são líderes europeus em termos de público. Segundo dados do Observatório Europeu de Audiovisual, em 2013, a França vendeu 193,6 milhões de ingressos de cinema, mais que o Reino Unido (165 milhões), a Alemanha (130 milhões), a Itália (107 milhões) e a Espanha (78 milhões). Seus filmes são menos exportados do que em outras épocas, mas ainda despontam sucessos inesperados regularmente. Ícones como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001) e O Artista (2011) costumam aludir a um passado lembrado com saudade.
Autor do influente ensaio Storytelling, La Machine à Fabriquer des Histoires et à Formater les Esprits, sobre como a noção de narrativa invadiu a política e a comunicação, Christian Salmon acaba de publicar Les Derniers Jours de la Cinquième République, onde vincula a crise institucional e econômica a uma desconcertante perda de controle sobre seu próprio destino. "O país perdeu seu caráter narrativo, deixou de contar uma história. Só se fala de si. É um país subordinado aos Estados Unidos e a Bruxelas, que imita as poses de um Estado soberano. Assistimos ao crepúsculo de uma França que, às vezes, era arrogante demais, mas que, pelo menos, tentava refletir sobre o mundo", lamentou. Salmon não encontra entre seus correligionários ninguém "do nível de Foucault, Deleuze, Baudrillard, Derrida e Bourdieu". "A cultura francesa de hoje reflete um país que duvida de si mesmo e que é assombrado pelo fantasma dessa soberania perdida. Preste atenção em Houellebecq", ressaltou.Une certaine idée de la France. A célebre fórmula de Charles De Gaulle constitui um ponto chave para enfocar o debate. O país continua agarrado a essa "certa ideia da França", que definia a nação como "um país diferente dos demais", como repetiram todos os presidentes desde então. De Gaulle entendia perfeitamente o papel estratégico da cultura. "À medida que a França deixava de ser um grande Império e se transformava em uma potência média, a cultura funcionou como arma para compensar o retrocesso geopolítico e econômico", afirmou Robert Frank, historiador e professor emérito de outra fortaleza da cultura chamada Sorbonne. Frank é o autor deLa Hantise du Déclin, um recente livro que percorre a história de um sentimento fatalista que não é precisamente recente, e que invadiu o clima político "desde os tempos da Belle Époque", às vezes de maneira irracional. "Não existe um declínio cultural. A cultura francesa ainda conta no mundo. O que há é uma crise moral, política e econômica muito profunda. Mas, se esta crise durar, aí sim acabará produzindo uma decadência".
A cultura é nossa única marca mundial. É quase nossa Coca-Cola", ironizou o diretor da emissora France Culture
É inegável que no passado houve épocas mais gloriosas. O primeiro ocupante do cargo de ministro da Cultura da República Francesa se chamava André Malraux. Sua obsessão, de acordo com a estratégia gaullista, era promover o chamadorayonnement da cultura francesa. Ou seja, a promoção de seus artistas além de suas próprias fronteiras. Foi desenvolvida, então, uma alucinante rede de diplomacia cultural, já existente desde 1909, mas que chegou ao apogeu nos tempos do gaullismo. Essa teia se transformou no que é, hoje, o Institut Français. Olivier Poivre d'Arvor é o atual diretor da emissora France Culture, mas entre 1999 e 2010 esteve à frente desta poderosa rede de centros culturais. Enquanto ocupava o cargo, viajou para 190 países promovendo a cultura francesa. "A obsessão por brilhar além de nossas fronteiras está relacionada ao fato de não ter lidado bem com o luto provocado por nosso declínio. Não o digerimos bem. Quando se foi um grande império colonial, econômico e cultural, é normal que, ao se olhar no espelho a cada manhã, a França tenha dúvidas sobre sua atual identidade". Poivre d'Arvor acredita que a cultura de seu país continua sendo importante, "mas sua capacidade de irradiação é menor do que em outras épocas", admitiu. "Se não, o resto do mundo seria queimado por nosso sol. E isso já não acontece, embora, às vezes, alguns raios continuem chegando".
Sobre a questão interna do país, Poivre d'Arvor defende que existem poucas sociedades que dão tanta importância à cultura. "Tem uma grande importância no plano simbólico. Aclama nossos ancestrais, é um legado para nossos descendentes e estreita laços na sociedade de hoje. Para um francês, receber o Nobel de Literatura é tão importante quanto ganhar a Copa do Mundo para outros países", garantiu. "Os franceses gastam 80 bilhões de euros (249,9 bilhões de reais) por ano em consumo cultural. E a cultura é nossa única marca mundial. É quase nossa Coca-Cola", ironizou. A importação dos museus franceses por parte das economias emergentes reforça seu ponto de vista. O Louvre abrirá uma sede em Abu Dhabi no final de 2015 e o Centro Pompidou pode inaugurar outra na China em um futuro próximo.
Para um francês, receber o Nobel de Literatura é tão importante quanto ganhar a Copa do Mundo para outros países
Poivre d’Arvor
Os norte-americanos de dois séculos atrás acreditavam na doutrina do Destino Manifesto, que os impulsionava a continuarem se expandindo além de suas fronteiras quase que por ordem divina. "Com matizes, a França e os Estados Unidos se parecem bastante nisso: acham que têm uma mensagem universal para dar aos demais e se utilizam de sua cultura para transmiti-la", confirmou Robert Frank. "A diferença é que a França mudou de estratégia oficial após o relatório Rigaud de 1979, quando decidiu ver os intercâmbios culturais sob o prisma da troca e não da influência unilateral. Mas, embora o Quai d'Orsay [margem do rio Sena onde estão concentrados alguns museus] já não se valha dessas práticas, essa noção antiquada e quase colonial do rayonnement continua muito viva no imaginário coletivo".
Para a França, a cultura também representa, hoje, uma fonte de riqueza que não pode ser transferida para Bangladesh em busca de menores custos, assim como seu reconhecido conhecimento, ousavoir faire, no mercado da moda e do luxo. Pode ser que seu autêntico poder se encontre aí. O Executivo francês encomendou, no ano passado, um estudo que apontou que a cultura contribuía para o PIB sete vezes mais do que a indústria automobilística. "A cultura também faz parte de nossa vontade de endireitar o país", disse esta semana a nova titular do Ministério da Cultura e das Comunicações, Fleur Pellerin. Desde que assumiu o cargo, esta promissora política, nascida na Coreia do Sul e adotada por franceses quando tinha seis meses de idade, exibe um discurso sem complexos a respeito do aspecto industrial da cultura. Não parece vê-la apenas como um simples prazer sensorial e estético, mas, ao mesmo tempo, não se esquece dos símbolos e da evocação dessa grandeur degradada. "A França é uma grande nação cultural, se não a maior, e devemos nos apoiar nessa excelência para favorecer sua irradiação para o exterior", disse Pellerin ao tomar posse. Em tempos de grandeurdecadente e finanças à deriva, qualquer boa notícia para a vacilante autoestima francesa é bem-vinda.