terça-feira, 28 de outubro de 2014

Filme mistura documentário e ficção ao mostrar um dia na vida de Nick Cave

Da Deutsche Welle

Uma das mais intrigantes figuras do rock é o tema central de "20.000 dias na Terra". Dirigido pelos ingleses Iain Forsyth e Jane Pollard, longa é um ensaio visual que retrata o universo do músico de forma inovadora.
Nick Cave – 20.000 dias na Terra é mais do que um documentário sobre o ídolo do rock. Com uma estética marcante e um jogo fascinante entre o real e o imaginário, o filme busca ser um retrato da alma e da essência do australiano, um dos mais importantes compositores dos últimos 30 anos.
Entre realidade e ficção, música e palavra, a obra dirigida pelos artistas e cineastas Iain Forsyth e Jane Pollard cria um ensaio visual que expõe Nick Cave e, ao mesmo tempo, reflete sobre a vida em geral.
"Conhecemos Nick há mais de sete anos, quando trabalhamos em alguns videoclipes. Quando estava entrando no estúdio para gravar Push the sky away [último álbum do cantor lançado em 2013], ele nos convidou para nos juntarmos a ele", contou Pollard no lançamento do filme na Berlinale, em fevereiro deste ano. "O material que registramos foi tão fantástico, tão diferente, que sabíamos que tínhamos que fazer algo com ele."
A ideia para o filme surgiu quando a dupla de diretores se deparou com um caderno de Nick Cave, em que, entre letras e anotações desconexas, estava escrito "20.000 dias na terra".
Ode à memória
Em mais de 35 anos de carreira, Nick Cave conseguiu um feito quase impossível para a maioria dos grandes nomes do rock: envelhecer com dignidade e ainda ser artisticamente relevante. Se sua voz mantém o tom sombrio, suas letras continuam sendo contos de amor e desespero, sua música quase nunca perde o vigor, tanto por sua poderosa guitarra quanto por seu poético piano.
"O que eu gosto sobre o filme é que ele me deu oportunidade de falar e refletir sobre coisas em que eu estava realmente interessado. Isso geralmente acontece numa situação de entrevista jornalística. Foi me dada a oportunidade de escrever e falar sobre coisas inesperadas, para as quais eu não estava realmente preparado", disse Nick Cave no lançamento do filme em Berlim.
Os diretores foram a fundo na ideia de recriar o 20.000º dia de Nick Cave na Terra: do despertar de seu relógio numa manhã nublada até o passeio noturno ao longo da praia após um show. Esse retrato é atmosférico e vai fundo na busca da poesia visual adequada para destrinchar a essência do artista.
Em certo momento, Nick Cave – que, além de cantor e compositor, também é escritor e ator – diz que as memórias são o que somos. O filme busca criar um processo para recontar essa história com elementos cinematográficos do presente. Num dia na vida do músico, os cineastas traçam um paralelo entre o processo de criação do compositor e o processo criativo de fazer o filme.
Longa traça um paralelo entre o processo de criação do compositor e o processo criativo de fazer o filme
Verdades e mentiras
"Quando você escuta o Nick falar sobre as imagens, foi tudo roteirizado [Nick Cave escreveu os textos]. O resto não foi. Tínhamos planos, storyboards; criamos situações, mas os diálogos são essencialmente improvisados. Sabíamos que queríamos uma visita a um terapeuta e aos seus arquivos pessoais, por exemplo", afirma Forsyth.
Em alguns momentos, o filme pode soar esquemático e artificial, o que por vezes é acentuado pelo seu forte caráter imagético. Mas as boas ideias entre mesclar ficção e realidade criam um retrato original do artista. Nick Cave nunca perde seu cool, mas revela, mesmo que de forma orquestrada, suas vulnerabilidades e nuances de sua personalidade, que podem surpreender os fãs e criar empatia com o grande público.
"Por um lado, o filme não foge do fato de que o que você está vendo é uma mentira, uma ficção. Acho que através do processo de contar a mentira, muitas verdades podem ser descobertas", revela Nick Cave.
"Muito pouco do que você vê é a verdade do que realmente acontece em frente às câmeras, mas a verdade não é tão interessante. Seguir esse caminho é afunilar nossa imaginação. Queremos chegar a um ponto mais rico e inspirador de contar uma história, a tornando mais cinematográfica", completa a diretora.
Diretores recriaram o 20.000º dia de Cave na Terra: do despertar numa manhã nublada até um passeio noturno
Fantasmas do passado
Nick Cave veio do punk. Ainda na escola, ele montou sua primeira banda, The Boys Next Door, que depois se tornou a The Birthday Party. O grupo, que misturava pós-punk com letras sombrias, alcançou relativo sucesso e trocou Melbourne por Londres e, depois, por Berlim Ocidental. Em 1984, o músico formou o Nick Cave & The Bad Seeds, com o qual já lançou 15 discos. Entre 1990 e 1993, Nick Cave viveu em São Paulo.
As cenas capturadas pela dupla de diretores no estúdio são um belo retrato da relação de Nick Cave com a música e seu processo de composição, que culminam numa apresentação ao vivo. "Eu vivo para me apresentar. Algo acontece quando você está no palco, onde você é transportado", revela o músico em certo momento do filme.
Ao invés de buscar músicos e pessoas que construíram a carreira de Nick Cave para entrevistas, os diretores foram muito felizes ao escolherem colocar essas pessoas ao lado do músico – parceiros do presente e fantasmas do passado.
O cotidiano ao lado do atual parceiro, Warren Ellis, é pontuado por conversas sobre a vida e música, criando suas canções no estúdio ou dividindo a catarse do palco. No carro, enquanto dirige por Brighton, cidade litorânea inglesa onde vive, Nick Cave tem encontro com alguns de seus "fantasmas".
Com um interessante simbolismo – uma gaiola com dois passarinhos empalhados, um olhando para o outro na porta malas de seu carro – Nick Cave não tem como fugir de suas conversas com os antigos parceiros. Ele discute o que é ser uma estrela do rock com Mick Harvey (ex-The Birthday Party), tem uma conversa agridoce com Blixa Bargeld (do Einstürzende Neubauten, ex-The Bad Seeds) e, numa das mais belas cenas do filme, fala com a estrela pop Kylie Minougue sobre sua relação com a plateia.
"Queríamos fazer uma obra da qual pudéssemos nos orgulhar. Nossa ambição era fazer um filme como nunca se viu antes, ir além das barreiras do que vemos em filmes sobre música. Para isso, você tem que quebrar algumas regras. Esse era um projeto que nunca poderia correr o risco de envolver vaidade. Nossa lei, desde o começo, foi não criar um veículo de promoção", completa Pollard.
Nick Cave – 20.000 dias na Terra foi exibido no Festival do Rio em setembro deste ano, mas ainda não tem data de estreia nos cinemas brasileiros.