Sem manutenção adequada e supervisão governamental, estruturas de alto risco ameaçam cidades inteiras, aponta análise de dados feita pela DW. Ao todo, 1.220 são classificadas como barragens com alto potencial de dano.
Quase 1 milhão de pessoas vivem perto de barragens potencialmente perigosas no Brasil. Essa é a conclusão de uma análise feita pela DW, feita a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB).
Os dados sobre barragens
foram extraídos em fevereiro de 2022 e cruzados com a grade estatística do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), levantamento que
oferece o maior detalhamento possível da distribuição da população no
território brasileiro, com base em informações do Censo de 2010.
Esse número se refere à
quantidade de pessoas que vive a até 1 quilômetro de distância de uma das 1.220
barragens do país classificadas como de alto risco e com alto potencial de
dano.
A classificação de alto
risco indica que uma barragem apresenta danos estruturais, falhas de projeto ou
falta de manutenção adequada. Na prática, isso significa que há um risco maior
de erros e incidentes que podem levar ao rompimento da estrutura. O alto
potencial de dano, por sua vez, significa que um eventual acidente pode gerar
grandes custos ambientais, humanos ou econômicos.
Os riscos para a população
que vive perto dessas barragens são exacerbados por um sistema de governança
falho. Ignorando exigências legais, muitas das estruturas não possuem planos de
segurança e emergência que descrevam o que deve ser feito em caso de desastre.
De acordo com dados
coletados em fevereiro de 2022, 39 das barragens de alto risco e alto potencial
de dano foram construídas para armazenar resíduos de mineração, um tipo de
estrutura considerado particularmente instável. Foram barragens desse tipo que
se romperam nos desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019).
A maioria das barragens de
risco, no entanto, foi erguida para garantir o abastecimento de água. Elas
estão localizadas principalmente no Nordeste, onde muitos reservatórios foram
construídos para mitigar os efeitos da seca. Sem a devida manutenção, hoje eles
colocam em risco cerca de 600 mil pessoas na região.
Infraestrutura negligenciada
Riacho da Cruz é uma cidade
com cerca de 3 mil habitantes que fica na porção semiárida do Rio Grande do
Norte. Lá, a maioria dos moradores vive logo abaixo de uma barragem de alto
risco. Construída em 1957 para ajudar a
manter a disponibilidade de água durante as secas frequentes, ela é um bom
exemplo do tipo de estrutura presente em boa parte do Nordeste.
"Nas décadas de 1960 e
1970, o governo federal tentou promover a segurança hídrica na região",
diz Mariano Andrade da Silva, do Centro de Estudo e Pesquisa em Emergência e
Desastres em Saúde (CEPEDE) da Fiocruz.
A construção de
reservatórios de água em áreas de seca fazia parte desses esforços. "Sem
manutenção adequada, essas estruturas se tornaram um risco para a
população", diz Silva.
Além da infraestrutura
estatal negligenciada, o pesquisador também relata preocupação com barragens
"órfãs", quando a pessoa ou organização responsável pela estrutura é
desconhecida ou não está mais participando ativamente da manutenção.
Aproximadamente dez de cada
mil nordestinos vivem perto de uma barragem perigosa – o maior número entre
todas as regiões do país. Para comparar, no Sudeste, o número de pessoas nessa
situação é de três em cada mil.
A falta de recursos nas
áreas onde estão localizadas essas barragens é um agravante. Vinte por cento
das cidades nordestinas com pelo menos uma barragem perigosa em seu território
não têm um núcleo local de Defesa Civil, de acordo com os dados mais recentes
do IBGE.
São justamente os núcleos
municipais de Defesa Civil que deveriam implementar programas de mitigação de
riscos, incluindo a identificação de áreas vulneráveis e o
estabelecimento de planos de contingência. Se ocorrer um desastre, eles também
seriam responsáveis por coordenar os esforços de resgate.
"Um desastre é um
evento improvável, mas se ocorrer pode levar não só a mortes, mas à destruição
dessas comunidades como um todo", diz Silva, acrescentando que os
reservatórios são importantes fontes de água tanto para o consumo humano quanto
para a agricultura. Uma falha na barragem, explica ele, também põe em risco a
segurança alimentar e hídrica local.
A história recente mostrou
quais podem ser as consequências de um desastre desse tipo. Em 2009, uma
barragem anti-seca se rompeu em Cocal, cidade do Piauí com cerca de 25 mil
habitantes. A tragédia matou nove pessoas, desalojou centenas e prejudicou a
economia agrícola local.
Desde então, acidentes
graves têm ocorrido com frequência no Brasil. Os desastres nas cidades mineiras
de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019, estão entre os maiores acidentes de
barragens da história do país e ainda estão frescos na memória nacional.
Juntos, eles foram responsáveis por
quase 300 mortes.
As barragens que entraram em
colapso nessas cidades, entretanto, são muito diferentes das que ameaçam boa
parte do Nordeste: elas eram barragens de contenção de resíduos de mineração.
Metade dos desastres
aconteceu em barragens de mineração
Ainda que as barragens de
contenção de rejeitos existam em número significativamente menor, elas são
responsáveis por um número desproporcional de acidentes e tragédias.
Dos 18 grandes acidentes com
barragens registrados no Brasil entre 1986 e 2019, nove foram em operações de
mineração. Oito deles, incluindo as catástrofes em Brumadinho e Mariana,
ocorreram em Minas Gerais.
"Barragens de rejeitos
não contêm simplesmente água, como as outras. É muito diferente. O rejeito tem
elementos como areia, argila, amido, ferro... É muito mais perigoso, mais
instável", diz Evandro Moraes da Gama, professor do departamento de
engenharia de minas da Universidade do Estado de Minas Gerais (UFMG). "Não
há técnica, no Brasil ou no mundo, que consiga fazer isso com 100% de
segurança."
Rafaela Baldí, engenheira
geotécnica com doutorado em segurança de barragens na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), diz que a maioria das falhas pode ser atribuída a más
práticas de gestão.
Segundo Baldí, as
mineradoras são responsáveis pela falta de cuidados adequados, pois buscam
aumentar os níveis de extração e reduzir custos. A culpa, porém, é
compartilhada com as instituições destinadas a monitorar as atividades de
mineração, acrescenta a especialista.
A tragédia de Brumadinho é
um exemplo do problema. Executivos da mineradora Vale e auditores da empresa
alemã Tüv SÜD, que atestaram a estabilidade do rompimento da barragem, hoje
respondem a acusações de ignorar problemas estruturais.
"Infelizmente, isso não
é exclusivo desse desastre. Essa é uma prática comum no Brasil. As mineradoras
pressionam os consultores, e eles acabam escrevendo o que é mais conveniente no
momento", diz Baldí.
Falta de governança
Quando as barragens de
Brumadinho e Mariana se romperam, não estavam classificadas publicamente como
estruturas de alto risco. Isso ilustra outro aspecto do problema das barragens
no Brasil – a falta de informação adequada. O país não sabe quantas barragens
existem em seu território e quão bem preservadas elas de fato estão.
Desde 2010, as informações
sobre todas as barragens do país passam a ser centralizadas no Sistema Nacional
de Informações sobre Segurança de Barragens, mantido pela Agência Nacional de
Águas (ANA).
No entanto, os dados estão
longe de completos, conforme destacado nos próprios relatórios anuais da ANA.
Cerca de 22 mil barragens estão atualmente registradas no banco de dados, mas a
agência estima que existam cerca de 170 mil reservatórios artificiais de água
no país.
Não há informações
suficientes para determinar se 57% das barragens cadastradas no sistema estão
sujeitas à legislação que define padrões de segurança para estruturas acima de
um determinado tamanho, nível de risco ou classificação de dano potencial.
Além disso, a maioria das 6
mil barragens que estão sujeitas aos protocolos nacionais de segurança não
segue a legislação adequadamente. Cerca de 75% delas não possuem os planos de
segurança ou emergência necessários. Em outras palavras, elas não estão
atreladas a orientações básicas sobre o que fazer caso aconteça um desastre.
Segundo Fernanda Laus,
coordenadora de segurança de barragens da ANA, é natural que existam lacunas de
informação durante a implementação de uma nova política pública. O banco de
dados de monitoramento de segurança foi criado há 12 anos.
Ela acrescenta que as
lacunas podem ser parcialmente atribuídas à natureza pulverizada do sistema
regulatório. Na prática, os dados são coletados por 44 organizações
governamentais com diferentes níveis de financiamento e capacidade de atuação.
"Os recursos são
limitados. É natural começar com barragens maiores e deixar as menores para
depois", diz Laus, acrescentando que alguns reguladores estão coletando os
dados faltantes de forma eficaz. "Mas isso não é uma realidade para todas
as agências. Algumas delas simplesmente não têm capacidade para fazer isso por
enquanto."
Rodrigo Menegat Schuinski, DW
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