"Continua a estar fugida, desde 18 de agosto de 1871, da serra do Engenho-Novo, de casa de seu senhor João Luiz de Vargas Dantas, a preta Felippa."
Assim começava o anúncio na edição de 20 de janeiro de 1872 do Jornal do Commercio, que circulava no Rio de Janeiro.
"Crioula, moça, robusta, de boa vista, altura e
corpos regulares, feições alegres, olhos vivos e meio brancos, beiços meio
grossos, com falta de alguns dentes, cor não muito retinta, seios grandes,
cabeça, corpo e nariz pequenos, pés compridos, meio grossos e meio virados nas
pontas para dentro, tem um dos dedos da mão meio encolhido para dentro, sinais
de bexiga pelo rosto, os quais são meio pretos e pouco profundos. Estava pejada
[grávida] e com a barriga bastante crescida, demonstrando muita proximidade de
dar à luz (o que deve há muito ter acontecido)."
Felippa deixou a casa de seu "senhor" cerca
de um mês antes da promulgação da Lei do Ventre Livre, que completa 150 anos
neste 28 de setembro de 2021 e que tornou livres todos os filhos de mulheres
escravizadas nascidos após sua promulgação.
As escravizadas grávidas estavam sujeitas a violências
terríveis: a tortura, a exaustão pelo trabalho — que muitas vezes se estendia
até o dia do parto —, um resguardo mínimo, com frequência de apenas três dias,
a possibilidade de separação abrupta dos filhos recém-nascidos.
Não surpreende que, como Felippa, muitas mulheres
grávidas tentaram fugir.
Por muito tempo invisíveis, essas histórias vêm sendo
contadas por pesquisadores que buscam vestígios dessas personagens nos
registros históricos disponíveis.
Uma delas é a historiadora Lorena Féres da Silva
Telles, que mergulhou em arquivos de jornais publicados entre 1830 e 1888 e
encontrou o anúncio sobre Felippa — e outros 131 com o mesmo tema, a fuga de
escravizadas grávidas.
Os dados viraram substrato para sua tese de doutorado
e, em conjunto com informações colhidas de periódicos médicos e teses das
faculdades de Medicina, ajudaram-na a trazer à superfície a relação entre
maternidade e escravidão na cidade do Rio de Janeiro no século 19.
"Como é um tema sem uma fonte seriada, o
pesquisador tem que buscar fontes de naturezas diversas, de autoria muitas
vezes de 'senhores', homens brancos, com uma escrita com um teor extremamente
racista, objetificante com relação às mulheres", ela sublinha.
"A partir desses textos, você tenta extrair a
perspectiva delas. Os ecos através da documentação — esse é o ofício da
historiadora ali, né? Pegar fontes históricas, porque elas não escreveram a
próprio punho, e encontrar os projetos, os desafios, as experiências, as visões
de mundo, as atitudes, as agências delas."
A tese será transformada em livro, com publicação
prevista para 2022.
Dando à luz no cafezal
Até o começo do século 20, a maioria dos partos no
Brasil era feita em casa, por parteiras ou pelas "comadres", mulheres
sem treinamento técnico, mas com grande conhecimento empírico, que gozavam da
confiança das mulheres de suas comunidades.
"Isso valia tanto para as 'senhoras' quanto para
as mulheres escravizadas; para as que moravam na cidade ou nas fazendas",
diz Cassia Roth, professora de História da América Latina e Caribe na
Universidade da Georgia, nos EUA.
"Os médicos só eram chamados quando havia algum
problema", diz a pesquisadora, que há anos estuda o tema, com uma pesquisa
minuciosa em fontes como os Annaes Brazilienses de Medicina e em documentos do
Judiciário.
As semelhanças, contudo, paravam por aí.
As mulheres escravizadas eram levadas ao limite nos
trabalhos forçados. Parte das evidências vem dos registros de viajantes como o
francês Charles Ribeyrolles, que em 1858 assistiu com perplexidade mulheres
grávidas prestes a dar à luz trabalhando na colheita de café nas plantações do
Vale do Paraíba.
Nessa mesma época, o médico Antonio Ferreira Pinto
escrevia que era comum que muitas entrassem em trabalho de parto no serviço ou
a caminho dele, com frequência carregando pesados cestos na cabeça.
Ele narra o caso chocante de uma escravizada que
começou a sentir as dores do parto no cafezal, mas não conseguiu chegar à
senzala a tempo: teve o bebê sozinha, desmaiou, "quer por perda
considerável de sangue, quer assustada por se ver só", e acordou quando os
porcos dilaceravam seu filho.
Telles pontua que, ainda que nas cidades a realidade
fosse diferente daquela das grandes propriedades cafeeiras, não significa que a
rotina fosse menos extenuante.
"O trabalho urbano também poderia ser muito
pesado — muitas tinham de carregar tinas de água."
As lavadeiras, por exemplo, passavam longos períodos
em pé, curvadas, o que lhes inchava as pernas e pés e, às vezes, chegava a
prejudicar o desenvolvimento do útero.
"E mesmo os trabalhos considerados menos pesados
do ponto de vista do esforço físico eram também muito complicados e difíceis,
como o das mucamas e das costureiras, porque elas ficavam muito cerceadas e
reclusas dentro das casas e, ali, sujeitas a assédios, abusos e violências por
parte da 'senhora' e do 'senhor'", acrescenta a historiadora.
Nesse sentido, o momento do parto também poderia ser
muito invasivo para essas mulheres.
Em muitos dos países de origem das mulheres
escravizadas — em Angola, por exemplo —, a experiência de dar à luz envolvia
posições e movimentos diferentes. As mulheres não costumavam cobrir o corpo e
os bebês passavam por uma série de ritos depois do nascimento.
Alguns desses costumes, ainda que com restrições,
tinham espaço nas áreas rurais do Brasil, onde o número de escravizados em cada
propriedade costumava ser maior. Como relata Roth, o mais comum nesses casos
era que os partos acontecessem nas senzalas e que as mulheres fossem auxiliadas
por outras escravizadas.
No ambiente urbano, a situação era bem diferente.
"Se você pensar em uma jovem africana, de repente
ela se vê na presença da 'senhora', que é uma mulher católica, que é branca,
que tem outra noção de parto. Pensar que essas mulheres têm o parto desse jeito
é extremamente violento, é uma violência em várias dimensões", ressalta
Telles.
Tanto nas fazendas quanto nas áreas urbanas, o tempo
de resguardo era mínimo. Os relatos de viajantes indicam que, muitas vezes,
elas estavam de volta ao trabalho apenas três dias depois de dar à luz.
Como o sistema escravista moldou a
obstetrícia no Brasil
O século 19 marcou não apenas o último capítulo da
longa história do escravismo como instituição formal no Brasil.
Esse também foi um período em que a ginecologia e a
obstetrícia se consolidaram como campos da Medicina no país. Nesse momento de
transição, não era raro que os médicos em formação praticassem nos corpos das
escravizadas.
Roth disse não ter encontrado evidências de que eles
submetessem essas mulheres a experimentos científicos — como foi o caso, nos
Estados Unidos, de médicos como James Marion Sims, que usou mulheres negras
como cobaias.
"Não se pode dizer, a partir dos documentos, se
esse tipo de experimentação aconteceu ou não no Brasil. Mas houve, sim, um
outro tipo de experimentação que também é perversa… é horrível ler esses
relatos um após o outro", diz ela, referindo-se aos periódicos médicos.
Um deles está citado em um trabalho recente da
historiadora — o capítulo de um livro ainda não publicado. Retrata uma palestra
em 1856 no auditório de anatomia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em
que se apresentava o caso de uma "preta" sem nome que morreu durante
o parto.
O médico que assistiu a paciente, sem prática no uso do
fórceps (uma espécie de pinça usada para puxar o bebê quando ele enfrenta
dificuldade para sair), aplicou-o com tanta força que "se rasgara a vagina
e exercera-se uma compressão tão forte sobre o colo do útero que esse se achava
bastantemente equimosado". Após a "tortura", como define a
pesquisadora, a mulher morreu.
Nos relatórios dos obstetras que se formaram na Santa
Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, Roth encontrou Henriqueta, que deu
entrada na maternidade do hospital escola, aos 17 anos, em 20 de abril de 1884.
Um primeiro exame mostrou que o feto estava em posição
invertida, com os pés para baixo e cabeça para cima. Meia hora depois, o bebê
tinha girado quase 180 graus. O ventre de Henriqueta foi apalpado por tantos
alunos e por tantas vezes que o feto acabou sendo involuntariamente deslocado.
A filha da jovem nasceu morta e Henriqueta passou outros três meses no hospital
até se recuperar de uma infecção.
Boa parte desses casos tem um denominador comum: a
ideia de que as mulheres negras tinham um nível de tolerância maior à dor.
Esse pensamento se espalhou entre a comunidade médica
do século 19, na esteira das teorias raciais e do racismo científico, mas
transborda esse período.
"Acho que a ideia de que as mulheres negras
suportam mais dor ainda existe na profissão médica no Brasil. A mesma coisa nos
Estados Unidos", ressalta Roth.
"É preciso ter cuidado para não estabelecer
necessariamente uma causalidade, mas definitivamente é possível enxergar
paralelos e ver como a instituição da escravidão afetou e moldou a profissão da
obstetrícia no Brasil", completa a pesquisadora, que trata desse assunto
no livro A Miscarriage of Justice Women's Reproductive Lives and the Law in
Early Twentieth-Century Brazil ("Um Erro da Justiça: A Vida Reprodutiva
das Mulheres e a Legislação do Brasil do Início do Século 20", em tradução
livre), publicado em 2020 pela editora Stanford University Press.
As mães escravizadas e os bebês brancos
A abolição da escravatura em 13 de maio de 1888 foi o
último capítulo da morte lenta do regime escravista no Brasil. Antes da Lei
Áurea, um conjunto de leis abolicionistas já vinha sendo instituído no país, a
conta gotas.
Houve a proibição do tráfico negreiro em 1850, que
acabou com os desembarques nos portos brasileiros de africanos sequestrados, e,
em 1871, a Lei do Ventre Livre, que considerava libertos todos os filhos de
mulheres escravizadas nascidos após sua data de promulgação.
Essa implosão lenta do regime escravista brasileiro
teve efeitos colaterais perversos para as mulheres escravizadas.
Um deles se abateu sobre o "mercado" de amas
de leite que há décadas dava lucro aos "senhores" em cidades como o
Rio de Janeiro, Salvador e Recife.
Mães escravizadas eram tradicionalmente alugadas para
amamentar os filhos de mulheres brancas de classe média e alta, que raramente
davam de mamar aos próprios bebês.
Por quê?
A resposta está no discurso médico da época, que dizia
que "a mulher branca é frágil, é linfática, é inconstante, é nervosa, tem
o leite 'fraco'", explica Telles.
"E se dizia exatamente o oposto complementar para
a mulher negra: elas são fortes, robustas, conseguem amamentar mais de uma
criança ao mesmo tempo, têm muito leite, seus filhos não precisam de tantos
cuidados assim."
Esse "mercado" acabou se tornando
extremamente lucrativo depois da proibição do tráfico. Com a redução do número
de escravizadas urbanas, o valor pago pelas amas de leite entrou em trajetória
crescente.
"E aí entra um traço muito cruel: as classes
médias e as elites preferem pagar o dobro ou o triplo do preço da mulher
escrava sem o seu bebê", relata Telles.
Assim, muitas mães eram separadas — temporária ou
permanentemente — dos recém-nascidos para que os bebês brancos não disputassem
atenção com seus filhos.
Antes da Lei do Ventre Livre, os "senhores"
tinham um incentivo econômico para manter os recém-nascidos vivos, já que eles
nasciam escravos e, nesse sentido, representavam-lhes ganhos potenciais no
futuro.
"Depois de 71, quando as crianças não vão ser
mais escravizadas, elas começam a ser largadas na rua, nas praias, na Roda dos
Expostos."
A historiadora conta que muitas parteiras — no caso do
Rio de Janeiro, muitas de origem francesa — se especializaram no que acabou
virando um filão dos estertores do mercado escravista: elas faziam os partos
das mulheres escravizadas em suas próprias casas, chamadas de "casas de
maternidade", e já se encarregavam de sumir com os bebês e alugar as
mulheres.
O número de crianças na Roda dos Expostos, também
conhecida como roda dos enjeitados — ligadas às igrejas e instituições de
caridade, que recebiam recém-nascidos abandonados — cresceu substancialmente
nessa época.
O destino de Felippa
A revolta das mulheres escravizadas aparece em
histórias como a de Felippa, nos registros de fugas nos jornais.
"Uma mulher que foge grávida de oito, nove meses,
de repente ela já sabe do plano do senhor de alugá-la como ama de leite",
ilustra Telles.
"Então elas decidem fugir tanto pela questão da
sobrevivência dos filhos, para deixá-los com alguma comadre, com alguém que
zele pela sobrevivência deles, quanto para não serem torturadas ou mesmo para
poderem viver o parto de uma forma que elas julgassem mais apropriada."
Nesse sentido, a rede de solidariedade que existia
entre as mulheres era fundamental.
"Essas mulheres têm comadres, elas andam pelas
ruas. A concentração africana e afrodescendente na cidade do Rio de Janeiro é
fortíssima. Tem ainda os 'zungus', que são casas de batuque e também de
alimentação… toda uma rede que o mundo urbano permite que exista, e que é onde
elas vão se amparar e tentar encontrar maneiras menos adversas para viver o
parto e o pós-parto."
No caso de Felippa, registros do Jornal do Commercio
de 1874 mostram que, depois de dar à luz, ela entrou com uma ação de liberdade
na Justiça reivindicando sua alforria.
A "secção judiciária" do jornal O Globo de
16 de maio de 1875 informa, contudo, que o pedido foi negado.
Camilla Veras Mota, BBC News
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