sexta-feira, 14 de outubro de 2016

“Autores negros insistem em suas origens africanas. As coisas não são assim”

Escritor e fotógrafo nigeriano radicado em Nova York, Teju Cole virou fenômeno literário
“Minha identidade é incapturável e múltipla”


“A escrita é só metade da história, a outra metade, às vezes a mais importante, é a imagem.” Assim Teju Cole (Michigan, 1975) resume a poética por trás da sua forma de entender a arte e contar histórias.

Para ele, que é fotógrafo além de um dos escritores mais reputados do ano, uma boa narrativa depende não só do que é revelado pela voz, mas também do que o olhar consegue apanhar. È a fórmula que ele aplica desde Every Day Is For the Thief (“todo dia é do ladrão”, 2007), seu primeiro livro, relato de uma viagem à Nigéria. Nele, a força da história depende em grande medida da reportagem fotográfica. Fora da Nigéria, onde o autor passou uma parte importante de sua vida, o livro passou despercebido. Em 2011, Teju Cole ganhou notoriedade internacional com a publicação de um romance quase perfeito, Cidade Aberta (Companhia das Letras), uma homenagem a Nova York, sua cidade adotiva, em forma de passeio. Influenciado por exegetas do olhar como Susan Sontag e John Berger, Cole afirma que sua prosa deve tanto ou mais a fotógrafos e cineastas do que à plêiade de escritores, oriundos das mais diversas tradições literárias, que o ajudaram a encontrar sua voz. Durante a conversa, o escritor nigeriano-americano – afável, agudíssimo e jovial – deixou claro que suas preocupações políticas nunca estão muito distantes da sua obra. Perguntado a respeito sua identidade, afirma que se trata de algo em extremo fluido: “Minha identidade é incapturável e múltipla. Não tenho um centro de gravidade como artista e como ser humano, ou talvez devesse dizer que meu centro de gravidade está sempre longe de onde me encontro”. Qual é a imagem favorita que você tem de si mesmo? “Alguém que estando em Nova York se lembra com saudade da Nigéria, só que estando lá seu sonho é voltar o quanto antes para Nova York.”

PERGUNTA. Quais diferenças você vê entre Cidade Aberta, romance que durante muito tempo todos acreditaram ser o seu primeiro, e o que realmente foi, Every Day Is For the Thief?

RESPOSTA. Não há tantas diferenças. No que diz respeito à gênese deles, na verdade são contemporâneos. Comecei Every Day... no começo de 2006 e o publiquei em 2007 na Nigéria. Naquela época encarei também a escrita de Cidade Aberta, que só viria a sair em 2011, nos Estados Unidos, porque demorei muito mais para escrevê-lo, três anos. Cidade Aberta é um romance muito mais complexo. Foi muito influenciado pelo modernismo europeu. Every Day Is For the Thief é muito mais clássico, mas a linguagem é também mais bela.

P. Com quem se sente em dívida como escritor? Acredita que a questão da origem racial é determinante?

R. Todo tipo de escritor me interessa. Muitos autores negros insistem em salientar a autenticidade das suas origens africanas, como se não houvesse nada além. As coisas não são assim. Todos nós tivemos uma sólida educação colonial. É absurdo negar, embora nem tudo se reduza a isso. Uma coisa que me parece muito importante apontar é que, da mesma maneira que o sumô é japonês, o romance é uma forma artística europeia. Você pode fazer as variações que quiser, como fizeram García Márquez e Vikram Seth, mas, de qualquer forma que se faça, o romance é uma forma artística europeia.

P. Todo mundo festejou a visão de Nova York exposta em Cidade Aberta, mas também são surpreendentes (e arrepiantes) as páginas que transcorrem em Bruxelas, onde aparece a situação em que vivem os muçulmanos. O livro parece profetizar o que aconteceu naquele país há alguns meses.

R. Não há nada de profético nisso. Ninguém pode adivinhar o futuro, mas quando se olha bem para o presente, quando se observa com atenção o que está acontecendo neste mesmo instante, vê-se com toda a clareza o que vai acontecer mais adiante. Vê-se que a assimilação dos norte-africanos está vedada. Quando fui a Bruxelas me chamou a atenção ver que havia muitos jovens, alguns muito bem preparados e inteligentes, aos quais era barrada a entrada na sociedade branca, que os considera árabes sujos. Muitos nasceram e se criaram ali. A Bélgica ou a França são o único mundo que conhecem, mas estão totalmente marginalizados, alienados, e quando as pessoas estão completamente alienadas se envolvem com a primeira ideologia doentia que lhes abre caminho.

P. Em seus livros sempre há um chamado à tolerância.

R. Um atentado como o de Nice é horrível não só pela matança, mas porque quem o perpetrou era francês. Qual é a origem de um ódio tão profundo? Claro que não se pode culpar a França, que é vítima de uma terrível tragédia, mas o que conduziu a tudo isto é originalmente a alienação, e a resposta tem sido alienar ainda mais esse setor da população.

P. Que papel a religião desempenha em tudo isto?

R. É importante não identificar o terror com o islã. O cristianismo é tão violento ou tão pacífico como o islã. Por outro lado, os maiores crimes contra a humanidade foram perpetrados por regimes antirreligiosos, como os da União Soviética e China. Os jovens que se alistam no Estado Islâmico não são religiosos. Um modelo é alguém de 20 anos que depois de anos de drogas, álcool e sexo um dia abraça uma forma de radicalismo que se cruza com a espiral de sua vida e, embora diga agir em nome do islã, nem conhece os textos sagrados nem fala árabe.

P. Você tem dupla nacionalidade. Como norte-americano, o que acha de um sistema político capaz de produzir tanto Trump como Obama?

R. Obama foi o produto do que na tecnologia da informação se conhece como “máquina capaz de aprendizagem”. O sistema político norte-americano funciona como essas máquinas. Com o tempo foi sendo refinado e chegou um momento em que gerou alguém como Obama, um negro alto, bonito, eloquente, cuja visão política se atém estritamente ao sonho do imperialismo americano. O problema é que, como qualquer sistema de informática, pode aparecer um hacker que conheça um ponto fraco da máquina e a faça saltar pelos ares. Trump está perfeitamente consciente de que o ponto fraco do sistema é o ressentimento dos brancos. Claro, os negros estão piores, mas isso não importa. A isso se soma sua habilidade para se servir dos meios de comunicação, que são incapazes de criar uma narrativa, têm poder tão somente para amplificá-la. Funcionam como um alto-falante, e os alto-falantes carecem de ética. Limitam-se a aumentar o volume do sinal que entra.

P. Qual é a questão de mérito?

R. Uma vez perguntaram a Gandhi o que achava da civilização ocidental, e ele respondeu: Acho que seria uma boa ideia. O mesmo vale dizer da democracia norte-americana. Acho que seria uma ideia fantástica, mas neste momento não existe.

Por Eduardo Lago, no El País

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