Estudo da variedade genômica do continente revela história de mestiçagem humana
Por JAVIER SAMPEDRO, no El País
Os geneticistas não esqueceram da África. Um projeto para cartografar a variação genômica do continente – maior do que a do resto do mundo junta – sequenciou os genomas de 320 pessoas de 7 grupos étnicos e linguísticos distintos, gerando um importante recurso de saúde pública e história das populações. O consórcio científico descobriu várias regiões genômicas que estão nesse momento sendo submetidas à seleção darwiniana, entre elas as envolvidas na resistência à malária e à hipertensão. Surpreendentemente, existem também padrões regionais de mescla com as populações euroasiáticas: o resto da humanidade saiu da África, mas parte dela regressou para o continente em algum momento.
“A história das origens e a diversificação humana é a história da África”, escreve Raj Remesar, da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, na revista Nature. Uma das novidades mais interessantes do Projeto sobre a Variação do Genoma Africano é que, ainda que tenha recebido impulso dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) norte-americanos e do Wellcome Trust britânico – ou seja, dos atores principais do projeto genoma público –, está contando com uma participação ativa e crescente dos pesquisadores africanos, coordenados pela Sociedade Africana de Genética Humana e o Consórcio África H3.
O Projeto sobre a Variação do Genoma Africana apresenta no artigo principal da Nature dados genéticos (não genomas completos) de 1.481 indivíduos de 18 grupos etnolinguísticos da África subsaariana. E também os genomas completos de 320 pessoas de sete desses grupos que abarcam boa parte da variabilidade da Etiópia (nordeste da África), Uganda (leste) e do sul do continente. Essas populações também representam os três grandes grupos linguísticos da África: os falantes das famílias linguística Níger-Congo, Nilo-saariana e Afro-asiática, e os pontos chave das rotas migratórias da humanidade ancestral.
O objetivo primário do projeto genoma africano é aproveitar as sofisticadas ferramentas da genômica para melhorar a saúde pública e o desenvolvimento biomédico – identificando os fatores de propensão às doenças e resposta a fármacos, por exemplo –, mas a África é o berço da humanidade, e o genoma de suas populaçõescontém também um registro vivo de nossas origens e nossa evolução. E não poucas surpresas.
Os dados revelam, por exemplo, uma considerável mescla dos genomas do oeste africano com populações euroasiáticas que, obviamente, devem ter migrado de volta para a África entre 7.500 e 10.500 anos atrás. Nessa época ocorria no leste do Mediterrâneo a revolução neolítica que inventou a agricultura e permitiu os primeiros assentamentos humanos, as primeiras cidades e a divisão do trabalho. As migrações originais saindo da África (out of Africa) que levaram a humanidade para o resto do planeta foram muito anteriores, entre 60.000 e 100.000 anos atrás.
Quando os humanos migraram para fora da África, levaram em seus genomas um subconjunto da variação genética ancestral africana"
A população do oeste da África também mostra as pegadas genômicas de outras mestiçagens passadas: dessa vez com o Khoe-San do sul da África, as populações de bosquímanos as quais não somente a genética, mas também a linguística, apontam como herdeiros diretos dos primeiros humanos modernos. Os Khoe-San, como outras populações de bosquímanos isoladas em diversos lugares da África, são falantes de ‘línguas-click’, onde muitas consoantes consistem em estalos da boca e da língua, como o som de um beijo.
Uma da ideias mais extraordinárias dos cientistas é que essas migrações euroasiáticas de volta para a África, ou dos Khoe-San do sul para o resto da África, levaram consigo um “gene wanderlust” (literalmente, um gene do espírito viajante, ou do desejo de viajar) que, desse modo, foi transmitido para outras populações africanas e que, finalmente, ocasionou a grande expansão dos bantos que espalhou por todo o continente as linguagens da família Níger-Congo, entre 3.000 e 5.000 anos atrás, somente. O que seria esse espírito viajante?
Charles Rotimi, diretor do Centro de Investigação Genômica e Saúde Global dos NIH, em Bethesda, e um dos coordenadores do estúdio, responde para o EL PAÍS: “O gene wanderlust se refere ao fato de que os humanos amam viajar e interagir com outras populações humanas próximas ou afastadas; ao chegar em novos destinos, os humanos amam compartilhar seu DNA, e no processo continuam disseminando o tecido genético humano”.
A África é o berço da humanidade, e o genoma de suas populações contém também um registro vivo de nossas origens e nossa evolução
“Somos portanto um mosaico da constituição genética de todos os nossos ancestrais”, prossegue Rotimi. “Quando os humanos migraram para fora da África há dezenas de milhares de anos, levaram em seus genomas um subconjunto da variação genômica ancestral africana; a presença de mesclas genômicas não-africanas – por exemplo, europeias e asiáticas – nas populações africanas atuais mostras evidências de migração em reverso, de volta para a África vinda da Europa e outras partes do mundo”.
Raj Remesar, chefe da divisão de Genética Humana da Universidade da Cidade do Cabo, não envolvido no estudo, coloca em um e-mail que a existência desse gene wanderlust não é certa. “Wanderlust refere-se às pessoas que gostam de viajar”, diz. “Minha noção é que o impulso que originalmente levou os africanos a sair do continente foram as pressões do entorno natural, mas depois podem ter ocorrido tendências genéticas que foram selecionadas a favor, por exemplo a tendência a continuar se movendo, a continuar viajando; e talvez tenha sido esse traço que levou alguns deles a viajar de volta para a África, e muito antes dos que as evidências nos levavam a crer. E que foi só depois desse traço entrar na África que ocorreram as migrações massivas que levaram os bantos para toda a África”.
Os grupos etnolinguísticos Afro-asiático e Nilo-saariano, por outro lado, não são tão homogêneos como se havia pensado anteriormente: sua contribuição para a diversidade genética africana é muito alta. Os pesquisadores interpretam que o outro grande grupo linguístico, o Níger-Congo, que dá conta da grande maioria da população na África subsaariana atual, representa uma propagação muito recente (talvez há somente 3.000 anos), e portanto muito homogênea, que se sobrepôs a populações antigas e muito mais variadas. As evidências genéticas e linguísticas contam mais uma vez a mesma história.
Pelo menos na genômica, a África começou a despertar.