sexta-feira, 2 de maio de 2014

A parte perdida da vida de Shakespeare

Da revista Veja



Cansado de responder à mesma pergunta aonde quer que fosse, o pesquisador e professor da Universidade de Columbia James Shapiro dedicou anos de sua vida para escrever o livro Quem Escreveu Shakespeare?  – A História de Mais de Quatro Séculos de Disputa pela Herança de uma Autoria (tradução de Christian Schwartz e Liliana Negrello, Nossa Cultura, 376 páginas, 59 reais). “Escrevi esse livro não só para mim, que estou cansado de responder a essa questão, mas para todos os professores. Agora, quando ouvem essa pergunta, eles podem dizer: ‘Vão ler o livro do Shapiro’. Ele custou anos da minha vida, mas facilitou a de todo mundo”, diz, com bom humor o americano que foi uma das atrações da Flip deste ano.
Estudioso de William Shakespeare há 25 anos, Shapiro já perdeu a conta de quantas vezes foi questionado sobre a autoria das obras do poeta e dramaturgo inglês. Segundo ele, já disseram que Shakespeare não escreveu Hamlet porque não havia sido capturado por piratas, como o personagem principal foi. “É muito perigoso criar um argumento dizendo que Hamlet era autobiográfico, coisa impossível de comprovar”, explica. Segundo o americano, entre os que duvidaram da autoria das peças de Shakespeare há gente inteligente como Mark Twain, Delia Bacon e até Sigmund Freud, que tentou utilizar o mesmo Hamlet para provar sua teoria do complexo de Édipo.
Os questionamentos sobre Shakespeare foram propiciados pela nebulosidade que encobre a vida do dramaturgo. Interpretações e inferências malucas sobre o autor inglês levaram Shapiro a se tornar o maior rival acadêmico de seu vizinho e amigo Stephen Greenblatt, professor da Universidade de Harvard e um dos maiores especialistas no tema. “Greenblatt cai na tentação de achar que sabe o suficiente sobre a vida de Shakespeare, mas não há evidências suficientes sobre ele”, diz. Apesar de se conhecerem há anos, a Flip foi o primeiro evento a reunir os dois num debate sobre o dramaturgo.
Para rebater as dúvidas, Shapiro oferece no livro um amplo painel da Inglaterra da época de Shakespeare (1564-1616). “Mesmo que eu não saiba muito da própria vida dele, sei o suficiente sobre o que estava acontecendo à sua volta”, diz o pesquisador, autor também de microbiografias de um ano na vida de Shakespeare. Depois da publicação de 1599: Um Ano na Vida de William Shakespeare, em 2005, ele agora trabalha em um livro sobre 1606, ano em que o dramaturgo inglês escreveu Rei LearMacbeth e A Tragédia de Antonio e Cleópatra. A obra deve levar até 10 anos para ficar pronta, ao fim dos quais Shapiro  planeja se aposentar.
Leia abaixo a entrevista exclusiva de James Shapiro a VEJA Meus Livros, feita em Paraty.

Em que tipo de assuntos o senhor e Stephen Greenblatt discordam? A discordância é sobre a questão de autoria? Não discordamos sobre a questão da autoria. Discordamos quanto às inferências de Greenblatt: para ele, Hamlet fala da relação de Shakespeare com o pai e o filho, mas ele tanto podia estar pensando no pai ao escrever como no tio, na filha, no homem da mesa ao lado. Nós não sabemos. Não podemos entrar em sua cabeça. Tudo o que temos é a história que ele criou, que é ficção. É muito perigoso tentar tirar um fato de uma ficção. De forma semelhante, há muitas pessoas dizendo que outros autores escreveram Shakespeare, mas não há nenhuma evidência disso.
Em que tipo de situação as pessoas dizem isso? Vou dar um exemplo. Em Hamlet, o personagem principal é capturado por piratas. Shakespeare nunca foi capturado por piratas, mas Edward de Oxford, uns dos autores que as pessoas dizem ter escrito Shakespeare, foi capturado. Então, as pessoas fazem o seguinte silogismo: “Hamlet foi capturado por piratas, Oxford foi capturado por piratas, Shakespeare nunca foi capturado por piratas. Quem você acha que escreveu Hamlet?” É muito perigoso criar um argumento dizendo que Hamlet é autobiográfico. Pode ser, mas nós não sabemos como, onde e quando ele é autobiográfico.
Você deseja descobrir algo novo sobre Shakespeare? Sim. Não sei que novidade descobrirei e se vai acontecer. Eu quero entender como Shakespeare criou bons trabalhos literários e o que estava acontecendo em seu mundo, como a pressão política, o clima e a economia, coisas que existem nas peças que ele estava escrevendo. Para fazer isso, tenho que entender as questões que as pessoas fazem sobre Shakespeare. Uma delas, não importa aonde eu vou, não importa com quem eu estou falando, é: ‘Shakespeare escreveu Shakespeare?’. Estou tão cansado de responder a essa questão em todos os lugares que senti que tinha de escrever um livro para respondê-la.
Entre os intelectuais que fazem essa pergunta, está Sigmund Freud. O senhor acha que Freud começou a questionar a autoria de Shakespeare para usar a obra Hamlet como prova de sua teoria do complexo de Édipo? Quando era jovem, Freud achava que Shakespeare tinha escrito Shakespeare. Ele não tinha dúvidas. No entanto, em 1899, ele desenvolveu sua teoria de Édipo baseado na leitura da tragédia grega e, principalmente, na leitura de uma biografia de Shakespeare, que dizia que o dramaturgo estava passando pela crise que ele chamaria de Édipo quando escreveu Hamlet, porque seu pai tinha acabado de morrer. Ele teria escrito Hamlet, então, como forma de 
trabalhar um trauma. Isso explicou para Freud como sua própria teoria estava certa e como ele estava apto para explicar a obra melhor do que ninguém. No entanto, 13 anos depois, um livro do mesmo autor da biografia foi publicado e , nele, o escritor disse que errou a data errada em que Shakespeare havia escrito o livro em dois anos. O certo é que o pai ainda estava vivo quando Shakespeare escreveu Hamlet. Para Freud, ou o livro não tinha nada a ver com a morte do pai ou outra pessoa escreveu essa obra. Freud decidiu que quem escreveu foi alguém que já tinha o pai morto. Freud é um gênio e, às vezes, gênios saem dos trilhos.
O senhor está escrevendo outro livro sobre Shakespeare?Meu próximo livro é sobre o ano de 1606, no qual eu tento entender tudo o que aconteceu no período. Para mim, 1606 é um ano muito interessante por diversas razões. A primeira é que, na maior parte do ano, todos os teatros em Londres fecharam por causa da peste e muitas pessoas morreram por causa da doença. Eu me pergunto como era viver nessa realidade e como isso influenciou as peças que ele estava escrevendo. Macbeth foi escrita nesse ano. Em um momento da obra, Shakespeare descreve como um jovem  morre antes que a flor que ele colocou em seu chapéu murchasse. Essa era a rapidez com que as pessoas morriam de peste. Quero entender a relação entre peste e criatividade. Minha outra motivação é que Shakespeare também publicou duas de suas principais peças nesse ano: Rei Lear e A Tragédia de Antonio e Cleópatra. Todas as três são boas tragédias.
Como o senhor passa da pesquisa ao texto? Eu não sei como cada informação pode ser importante, mas sei que, se eu acumular informação por anos, uma história emerge. Eu pesquiso, leio tudo o que foi publicado no ano que estou estudando, desde literatura até julgamentos. Uma das palavras-chave de Macbeth, por exemplo, é “equivocar-se”, que significa mentir, dizer suas coisas ao mesmo tempo, ser ambíguo. Para entender porque essa palavra era tão importante para Shakespeare, comecei a ler vários documentos, como convocações e cartas e descobri que todos na época estavam obcecados com ambiguidade.
Como o senhor tem tempo para ensinar e pesquisar? Eu não durmo e não tenho muitos hobbies. Se eu vivesse em Paraty, não seria capaz de escrever esse livro. O primeiro livro que escrevi me custou 15 anos. Dessa vez, a obra sobre 1606 levará menos tempo, algo em torno de 10 anos, porque eu sei como achar as coisas. Em 2015, estará pronto.
Como é o trabalho de pesquisa para as obras? O trabalho é muito solitário e não é divertido. Eu preferiria estar no cinema, em um jogo de beisebol, mas isso é o que eu faço. Eu não seria feliz se não fizesse isso. Quando não estou dormindo, estou pensando sobre isso. Nos últimos seis meses, você não teria gostado de morar comigo, porque penso nisso o tempo inteiro. É muito difícil ser uma pessoa legal quando você está escrevendo um livro. É como um demônio que entra em você. Quando eu estou terminando um livro, eu vou para Londres. Sentem minha falta, mas não tanto, porque, se eu estivesse terminando o livro em casa, eles gostariam que eu estivesse em Londres. Meu filho e minha mulher não me deixam escrever em casa. Eles falam para eu sair de casa e escrever em outro lugar.
O senhor sofre por não saber como Shakespeare era como pessoa? Eu adoraria saber como Shakespeare era como uma pessoa. Cinquenta anos depois de Shakespeare morrer, sua filha ainda estava viva, mas ninguém foi perguntar para ela como seu pai era. Nunca saberei como ele era, mas, se eu puder reconstruir seu mundo, suas peças, eu entenderei um pouco mais sobre o tipo de escritor que ele era e com quais tipos de coisa ele estava preocupado. Esse é o meu ponto particular de aproximação com Shakespeare. Ninguém mais faz isso. Gostaria de saber mais sobre ele, mas não tem jeito, só posso fantasiar como ele era.
É frustrante? Não. Existem coisas sobre minha mulher, com quem durmo há 20 anos, que eu nunca vou saber. Shakespeare morreu há 400 anos e eu nunca o conheci. Então, eu sei que eu nunca o conhecerei. Eu não fico frustrado, fico apenas desapontado por não saber.
Raissa Pascoal