Não matem Sakineh
De Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
Sakineh Mohammadi Ashtiani, de 43 anos, mãe de dois filhos, aguarda o momento de ser enterrada até o pescoço e apedrejada. Condenada pelo artigo 83 do Código Penal do Irã (Lei de Hodoud), que prescreve a lapidação por adultério, a iraniana da etnia azeri confessou sob chicote ter mantido relações ilícitas. Das cem chicotadas preconizadas pela sharia (lei), recebeu "apenas" 99 por "senso humanitário" do juiz. No sábado 31/7, Luiz Inácio, amigo do líder do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, foi impelido a sugerir, em praça pública, a acolhida da condenada entre nós. Depois da decisão de colocar o Brasil, juntamente com a Turquia, na defesa do programa nuclear do Irã, nosso presidente não esperava receber o troco em forma de deboche: "Pessoa humana e emotiva, que provavelmente não recebeu informações suficientes sobre o caso." Entre a humanidade do juiz, dispensando a última chicotada em Sakineh, a da Corte Suprema, que pode demonstrar "sensibilidade" e transformar o apedrejamento em enforcamento, e o toque sentimental de Lula, em seu esforço para evitar o "açoite" sobre o Irã, materializado em sanções impostas pela ONU àquele país, desenrola-se o fio de concepções relativas sobre vida, culturas e sistemas políticos.
A comovente história da iraniana serve para escancarar a hipocrisia de nações e a lógica que move seus interesses e trocas. Nem sempre se paga a solidariedade de um país a outro com reciprocidade. A fraternidade demonstrada por Lula para com o Irã acabou sendo correspondida com desdouro. O Brasil nem se recupera do impacto negativo sofrido pela decisão de apoiar o programa nuclear iraniano e vê o apelo de seu mandatário, mesmo feito informalmente, ser transformado em bobagem, coisa ingênua de pessoa desinformada. O que as autoridades iranianas possivelmente pretendem transmitir é a feição dogmática de sua cultura: o apedrejamento tem o amparo do Hadith, a palavra sagrada do profeta Maomé, e é acolhido pela Justiça. A questão, ampla, envolve o conflito entre o Islã e o Ocidente, que tem como pressuposto fundamental a intransigente defesa de seus sistemas. O islamismo não recua em sua disposição de se impor como guia cultural, religioso, social e político no mundo moderno.
Esse pano de fundo abriga o antagonismo histórico Islã-Ocidente, centrado menos em posições territoriais e mais em temáticas que ferem os modos civilizatórios, tais como a proliferação de armamentos, os direitos humanos, as liberdades individuais e sociais, as questões relacionadas à imigração, o terrorismo fundamentalista e as ameaças de intervenção do Ocidente. Convém, aqui, avaliar a posição de certas nações, entre as quais o Brasil, para as quais a geopolítica contemporânea deve pautar-se no pragmatismo de orientação econômica, cujo vetor aponta para a complementaridade de seus nichos negociais. Sob este prisma, as relações comerciais entre países importam mais que injunções de natureza social e política. Ora, a perspectiva que privilegia a matéria econômica em detrimento dos valores éticos e morais não pode ser aceita nos moldes em que é argumentada pela diplomacia. É inconcebível que países de talhe democrático, à moda dos três macaquinhos (fechando olhos, ouvidos e boca), se sintam confortáveis com afagos e abraços dados em déspotas de regimes ditatoriais.
É bem verdade que boa parte do mundo frequenta a zona cinzenta de um relativismo moral e cultural. Sob esta pisada, sistemas fechados tentam legitimar a repressão. Não é esse o caso do Irã? Quando esse país diz com todas as letras que o presidente brasileiro está desinformado, na verdade quer sugerir outras respostas: "Não se intrometa em nossos costumes, não dê palpites em nosso sistema judiciário, não bote o bedelho onde não é chamado." Ou, de modo mais educado: "Nós apreciamos sua humanidade para defender nosso território no concerto das Nações, mas, por favor, não a use para contrariar nossos códigos de conduta e justiça." Se Luiz Inácio der o dito pelo não dito, esquecendo o apelo que fez por Sakineh, imitará os três macaquinhos. Principalmente neste momento em que a defesa dos direitos humanos ganha relevo nos foros internacionais - basta olhar para a libertação de 50 prisioneiros políticos de Cuba -, nosso presidente, pessoa afeita a lances de grande visibilidade, poderia ancorar a imagem brandindo a sagrada bandeira das liberdades. O Itamaraty, por sua vez, deve conter o ímpeto de construir pontes de fraternidade com qualquer pedaço do mundo a título de reforçar laços comerciais. Poderia dosar seu pragmatismo com pequena lição dos clássicos: "As culturas são relativas, mas a moral deve ser absoluta." A fatia ética há de fazer parte do bolo que o Brasil busca extrair dos fornos do planeta.
Com espaço continental, incomensuráveis riquezas, povo acolhedor, sentimental, alegre e criativo, o País terá voz mais elevada se decidir integrar a vanguarda da luta pelos direitos humanos. Basta de tergiversação. Sob essa crença, e ante a confirmação da sentença pela Alta Corte do Irã, Lula poderia insistir, agora formalmente: "Sr. presidente Ahmadinejad, adicione uma pitada de grandeza ao Irã. Liberte Sakineh. O gesto abrirá espaços de solidariedade para sua nação. Entendemos a identidade cultural de seu povo. No campo ético e moral, porém, não deve haver relativismo."
Abro espaço para Marina Nemat, autora de Prisioneiros em Teerã, livro de memórias em que descreve a prisão Evin, em Teerã: "De 1982 a 1984, ainda adolescente, presa política, fui ali torturada e estuprada. Vi meus amigos sofrerem e morrerem. Tantas vidas jovens e inocentes devastadas ou perdidas. Mas o mundo continuou como se nada tivesse acontecido."
Em tempo: as pedras para a lapidação não podem ser muito grandes, porque a ré deve sofrer o suficiente e não pode morrer logo; tampouco devem ser pequenas, porque os lapidadores demorariam muito. Mas a humanidade dos juízes poderá "conceder-lhe" a morte por enforcamento.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO