segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Só se interrogam bandidos?


O século XXI encontrou um mundo com os vínculos sociais fragilizados e a individualidade ávida – exclusivamente - pela satisfação pessoal.

O egocentrismo como centro da construção da personalidade individual e o descaso para com os interesses alheios, vão tornando as pessoas seres brutais, soldados de um exército obcecado pelas aspirações pessoais, ainda que conquistá-las exija o sacrifício ou da coisificação do outro.

Neste contexto não sobra tempo para ninguém, vez que todo o tempo de que dispomos está direcionado ao atendimento de nossas necessidades individuais.

Por isto é tão difícil nos dias de hoje conquistar a atenção de alguém. Porque toda a atenção do mundo é desviada do interesse coletivo.

Daí o surgimento de técnicas e teorias para tornar possível a possibilidade do outro. E nessa ciranda, os exageros viram regras, não exceção.

O exemplo mais eloqüente talvez seja o representado pela figura do marqueteiro, que consegue transformar candidatos presidenciais em sabonete e creme vaginal.

Qualquer um de nós que queira ou necessite transmitir uma mensagem precisa contar com a atenção de seu interlocutor. E nos dias que correm, com tudo se reduzindo a numerário – sobretudo o tempo – a atenção do outro é uma preciosidade que não se conquista com facilidade.

Para conseguir acolhida para a mensagem, muitos recorrem a toda sorte de maquinações e invencionices.

Enéias do Prona sagrou-se campeão de votos, sendo eleito deputado federal pelo estado mais poderoso da federação. Conquistou mais de um milhão de votos com seu estriônico “meu nome é Enéias”, jargão repetido à exaustão nos parcos minutos que dispunha nos programas eleitorais.

Mas existem também os que navegam em águas mais profundas para se promoverem: se penduram em anzóis, seguram os filhos de ponta cabeça do enésimo andar de um espigão, os que não se incomodam em vender a mãe, os possessos de arremessar pedra em sombra de avião, e patéticos imbecis como o que se colocou à frente do maratonista olímpico Vanderlei Cordeiro. Tudo para que sejam percebidos.

Quanto mais indiferentes ao que se passa à volta, quanto mais submergidos no mundo próprio, maior a necessidade de distinguir, destacar, sobressair, para que a idéia se eleve e encontre porto para atracar. Este processo se bifurca em duas direções.

Na primeira, a atenção é conquistada à custa de criatividade, de inovações que estimulem o olhar para fora, a percepção da realidade em volta. Para que uma decisão mais conseqüente possa ser tomada.

Na segunda, a grosseria, a baixaria compõem o arcabouço, o pano de fundo do estratagema de conquistar o interesse das pessoas. Movidas a indicadores que aferem a audiência de suas programações minuto a minuto, as redes de televisão se esmeram em apresentar uma produção de mau gosto, em que a mediocridade e a superficialidade são marcas registradas.

De igual modo, os políticos lançam mão deste substrato, assumindo projetos e proposições pautados pela demagogia e artificialidade.

Em quase todos os momentos de nossas vidas estamos em busca da atenção de alguém. O governo, de seus contribuintes; os empresários, de seus clientes; os apaixonados, de seus amores; os políticos, de seus eleitores; os pais, de seus filhos; os filhos, de seus pais; ...

É que num sistema em que a tônica é a competição, a atenção é como uma jóia rara, cobiçada, e por isto disputada a ferro e fogo.

Também nas salas de aula o professor se depara com este problema. Procura seduzir, conquistar a atenção. E encerra a aula satisfeito quando consegue despertar o interesse dos alunos. Alguns mestres, mais envolvidos, se enveredam por atuações performáticas, lançando mão da música, da dança, do teatro para tornar a exposição mais oxigenada, viva e instigante. Conseguem transformar fórmulas matemáticas e composições químicas em rimas métricas. Como recompensa pelo esforço, recebem dos alunos aplausos e um tipo de comprometimento que desemboca na substancial melhoria do rendimento escolar.

Boa parte dos alunos apresentam-se na escola desinteressados, desestimulados, com um grau de passividade e alienação preocupantes. E isto vem ocorrendo da pré-escola à universidade.

O universo em que o sistema educacional brasileiro está mergulhado é um caos absoluto. Os três níveis de governo não cumprem o dispositivo constitucional que determina o repasse dos recursos orçamentários, e nem priorizam – a não ser no discurso – a educação como estratégia para alcançar o desenvolvimento. Resulta um cenário em que todos se sentem descontentes: alunos, professores, pais e responsáveis, comunidade ...

Mas nos estreitos limites das possibilidades, os professores podem muito. E uma boa forma de, na sala de aula, poder mais, é resgatar o “interrogatório” como instrumento de mobilização e participação.

O problema é que, muito mais no passado e com menor intensidade nos dias de hoje, o “interrogatório” sempre esteve relacionado a contextos punitivos, a mecanismos de afirmação da autoridade e do poder discricionário dos mestres sobre os aprendizes. Para os que se atrasam, os que se dispersam, os que enveredam por conversas paralelas, “nada melhor” que uma bateria de perguntas capciosas. De efeito instantâneo, o “interrogatório” de natureza punitiva é o sucedâneo da palmatória e do castigo em que se dispunha o “culpado” ajoelhado sobre grãos de milho.

Essa é, em parte, a razão desse importante recurso de mobilização ter caído em descrédito. Ressalte-se ainda que a palavra interrogatório nos remete ao “auto em que se escrevem as respostas do indiciado ou do réu às perguntas feitas pela autoridade competente”. Em virtude da definição do vocábulo, a primeira lembrança estará quase sempre associada a repressão, a problemas com o judiciário ou com a polícia, coisas nesse sentido.

Todavia, utilizado num outro contexto, o “interrogatório” pode estimular os alunos a estabelecer novos pactos, novas relações, assumindo uma postura participativa e de compromisso com a consecução das metas traçadas.

Neste novo contexto, o “interrogatório” conduz a uma participação mais intensa, e conseqüentemente, favorece o envolvimento de toda a classe nos debates e discussões. A reflexão passa do individual para o coletivo, agregando substância, refinando a lógica e o raciocínio, qualificando as aulas.

Para manter-se distante do ultrapassado estigma, o sistema pergunta-resposta deve ser livre e multidirecional. Livre no sentido de todos se sentirem bastante a vontade para indagar o professor sobre assuntos de qualquer natureza. Caberá ao mestre a habilidade de fazê-los convergir ao conteúdo de interesse, de que trata o ementário. E multidirecional no sentido de que os alunos devem se perceber parte do processo, devem se sentir estimulados a formular perguntas e respostas – para o professor e para os colegas. Já o mestre - para responder às questões - deve se certificar que extraiu o máximo dos alunos, e mais, que a classe tenha exaurido os meios de pesquisa disponíveis. Quando o aluno desconhece a resposta deve se habituar a investigar recorrendo a estudos, pesquisas, anotações, mas sobretudo interrogando colegas, professores, lideranças da comunidade,... O mestre deve orientar a busca, ensinar a pescar, incutir no aluno que ele é capaz caso queira.

Enganam-se os que imaginam que os “interrogatórios” só se prestam para aferir ou recordar conhecimentos adquiridos. Colocados nos devidos termos, despertam o interesse pelo tema proposto, reforçam a atenção atuando em contraponto às distrações, conduzindo o raciocínio por uma via menos congestionada, além de auxiliar na identificação de deficiências e incompreensões dos participantes.

O “interrogatório” efetuado de forma correta chama à participação, possibilita comparações, relações e julgamentos.

Mas é necessário precisar o que, como, quando e a quem perguntar. Esta sistematização é que dará ao sistema o encadeamento lógico capaz de levar a um aprendizado consistente. Porém, todo este processo só alcançará resultados satisfatórios se revestido de simplicidade. Os chineses costumam ensinar que só a simplicidade leva à verdadeira harmonia.

Importa evitar perguntas compostas, complexas, longas, desestruturadas. Clareza, objetividade e inter relacionamentos. Eis os predicados.

Também não categorizar as questões como fáceis, difíceis ou medianas. Devem estar compatíveis com a capacidade de resposta dos alunos. É fundamental que sejam interessantes e estimulantes.

Outro ponto a destacar é que não existe pior questionamento do que aquele formulado com a resposta embutida. Identifica, quando menos, um investigador prepotente, pretensioso a ponto de prescindir de seu interlocutor, um arrogante que conversa consigo mesmo imaginando estar dialogando com o outro.

De nada adiantará todo o esforço e trabalho se o professor ficar refém de três ou quatro alunos mais interessados. É imperativo que todos os alunos sejam envolvidos na dinâmica, democratizando e universalizando o processo, evitando assim que o processo seja apropriado exclusivamente pelos mais prolixos e espontâneos. Os tímidos, os que se sentem fora do tempo e do espaço, devem receber atenção redobrada, até que estejam equiparados aos demais colegas.

Um surrado ditado popular repercute ao longo da história da humanidade: quem tem boca vai a Roma.

Os educadores deveriam atinar mais sobre os antigos ensinamentos.

Artigo de Antônio Carlos dos Santos publicado na Revista Bula e no portal Goiás Educação