domingo, 27 de fevereiro de 2011

Morre o gigante Moacyr Scliar

"Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que "baixa" no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas — o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente".


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Aos 73 anos, morre Moacyr Scliar
Escritor estava internado desde 11 de janeiro e teve falência múltipla dos órgãos
estadão.com.br
O escritor Moacyr Scliar que havia sofrido um acidente vascular cerebral isquêmico (AVC) e estava internado no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre desde 17 de janeiro, faleceu à 1h deste domingo, 27 de fevereiro. Segundo boletim médico, Sclyar, morreu de falência múltipla de órgãos.

Tasso Marcelo/AEO escritor gaúcho, Moacyr ScliarInternado desde 11 de janeiro para uma cirurgia de extração de tumores no intestino, Scliar sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico no dia 16 de janeiro e foi encaminhado à Unidade de Tratamento Intensivo. No dia seguinte, sofreu uma cirurgia para retirada de coágulo decorrente do AVC, passando a ser mantido com um mínimo de sedação necessária. O escritor passava pela retirada gradual da sedação quando, no dia 9 de fevereiro, apresentou um quadro de infecção respiratória, voltando então a ser sedado e a respirar por aparelhos.

O velório acontece neste domingo, a partir das 14h, no salão Júlio de Castilhos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

O sepultamento será na segunda-feira, 28, em local e horário ainda indefinidos. Esta cerimônia será apenas para familiares e amigos.

História

"Não preciso de silêncio, não preciso de solidão, não preciso de condições especiais. Preciso só de um teclado." Em meio a dezenas de depoimentos de autores sobre as mais diferentes manias no momento de escrever, publicados desde o início do ano passado no blog do escritor Michel Laub, o do gaúcho Moacyr Scliar se destacou pelo pragmatismo: para o criador prolífico e naturalmente inspirado, o único impedimento para a escrita seria a falta da ferramenta com a qual levá-la a cabo.

Tanto era assim que, em quase 50 anos de carreira literária, o porto-alegrense publicou mais de 80 livros - o primeiro, Histórias de um Médico em Formação, em 1962, mesmo ano em que concluiu a faculdade de medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e o mais recente, o romance Eu Vos Abraço, Milhões, em setembro do ano passado. Entre um e outro escreveu romances e livros de crônicas, contos, literatura infantil e ensaios, numa média de mais de um livro por ano, com destaque para O Ciclo das Águas, A Estranha Nação de Rafael Mendes, O Exército de um Homem Só e O Centauro no Jardim.

Tudo isso mantendo os critérios que o tornaram um dos mais reconhecidos autores brasileiros contemporâneos em solo nacional, com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras desde 2003 e três Jabutis (1988, 1993 e 2009) entre prêmios recebidos, e também no exterior, com obras publicadas em 20 países e honrarias como o Casa de Las Americas, em 1989.

E sem deixar de lado a carreira na medicina. Na área, destacou-se desde 1969 em cargos como chefe da equipe de Educação em Saúde da Secretaria da Saúde de RS e diretor do Departamento de Saúde Pública. Entre o lançamento do livro de contos que Scliar preferia considerar como sua primeira obra profissional, O Carnaval dos Animais, em 1969, e o primeiro romance, A Guerra no Bonfim, em 1971, encontrou tempo ainda para cursar pós-graduação em medicina comunitária em Israel. Ainda no início da década passada, em 2002, concluiu doutorado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, com a tese Da Bíblia à Psicanálise: Saúde, Doença e Medicina na Cultura Judaica.

A tradição judaica o acompanhou em toda a carreira literária, assim como o imaginário fantástico - nascido em 23 de março de 1937 no bairro do Bom Fim, que até hoje reúne a comunidade judaica de Porto Alegre, e alfabetizado pela mãe, Sara, que era professora primária, Scliar chegou a ter o romance O Centauro no Jardim incluído numa lista com os cem melhores livros relacionados à história dos judeus dos últimos dois séculos, elaborada pelo National Yiddish Book Center. Também se tornou um grande porta-voz do País sobre temas relativos ao judaísmo, mantendo laços de amizade com alguns dos maiores autores israelenses no mundo contemporâneo, como David Grossman, A.B. Yehoshua e Amos Oz.

A especialização em saúde pública, por sua vez, deu a Scliar a oportunidade de vivenciar temas como a doença, o sofrimento e a morte - características que podem ser percebidas tanto em sua ficção, em obras como A Majestade do Xingu, quando na não ficção, caso em que A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura é um dos exemplos mais claros. Ele pôde também conhecer de perto a realidade brasileira, o que fez da vida de classe média, sempre em textos leves e bem-humorados, outro de seus assuntos centrais.

Casado desde 1965 com Judith Vivien Oliven e pai de Roberto, nascido em 1979, Scliar também dedicou atenção especial às obras infanto-juvenis. Costumava dizer que escrevendo para os jovens reencontrava o jovem leitor que havia sido. Boa parte de sua produção nessa área foi considerada "altamente recomendável" pela Fundação Biblioteca Nacional.

Além de produzir textos para vários jornais e revistas, o autor também teve trabalhos adaptados para o cinema. Caso do romance Um Sonho no Caroço do Abacate, adaptado em 1998 por Luca Amberg sob o título Caminho dos Sonhos, em cujo elenco apareceram atores como Taís Araújo, Caio Blat e Mariana Ximenes. Em 2002, o romance Sonhos Tropicais também virou filme, sob direção de André Sturm, com Carolina Kasting, Ingra Liberato e Cecil Thiré entre os atores.

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moacyr scliar
estrela e guia

Jean-Paul Sartre escreveu boa parte de sua obra no Café de Flore, em Paris. Não foi o único. Muitos escritores procuraram em cafés o refúgio e o estímulo para a elaboração de suas obras. Café e bares, naturalmente. Podemos imaginar que ensaios e obras filosóficas são melhor escritos em café; mas para a poesia o bar é um cenário muito melhor. Aliás, a história da poesia brasileira poderia ser escrita tendo os bares como marcos históricos. Foi no Villarino, bar do centro do Rio, que Vinicius propôs a Tom Jobim a primeira parceria, dando início a uma gloriosa trajetória.

Mario Quintana também freqüentava bares. Não sabemos quantos poemas pode ter escrito ali, nem sabemos se o fez, mas sabemos que prestou ao bar, visto como refúgio, uma bela homenagem.

O poema chama-se, justamente, Canção de bar e começa assim: “Barzinho perdido / na noite fria / estrela e guia / na escuridão”.

Estes quatro versos são típicos da poesia e do poder criador de Mario Quintana. São feitos de palavras absolutamente comuns, destas que figuram no vocabulário de qualquer brasileiro. Nada de exageros, nada de arroubos, nada de vocábulos complicados: Mario era um poeta essencialmente democrático. Mas, com esta simplicidade, ele criava beleza. Mais criava um clima. Começamos a leitura e de imediato nos vemos em uma daquelas nevoentas noites do inverno porto-alegrense. O poeta vagueia sem rumo na noite porto-alegrense. Avista o bar, um pequeno estabelecimento, e de imediato vê nele “estrela e guia”. Entra esperançoso. E o poema prossegue: “Que bem se fica! / Que bem! Que bem! / Tal como dentro / de uma apertada / quentinha mão...” E por que se sente bem? Por causa das figuras imaginárias que encontra: “Rosa, a da vida”, que talvez tenha iniciado o poeta, como era comum no Rio Grande de outrora; “E o Pedro Cachaça / com quem me assustavam / (O tempo que faz!)”; “E o Anto que viaja / pelo alto mar”.

Ali também estão, em espírito, os poetas franceses que influenciaram o jovem Mario: Verlaine, Rimbaud, Villon. No fim, tudo tem a ver com poesia, até mesmo a caninha, que, pretensamente pura, foi batizada com “a mais pura água”. O que ao poeta não incomoda; porque “... poesia pura / ai seu poeta irmão, / a poesia pura / não existe não!” Claro, não era só em bares que o poeta encontrava a humanidade. Embora fosse um homem retraído, tímido mesmo, não era um misantropo, não recusava a companhia de outros seres humanos. Ao contrário, sentia-se bem em lugares freqüentados por muitas pessoas. A redação do jornal, para começar. Ali, diz Antonio Hohfeldt, que foi seu colega no " Correio do Povo", Mario passava horas, dedilhando seus textos na máquina, ou simplesmente pensando. Ou então no cinema: era um cinéfilo contumaz, via qualquer tipo de filme, desde faroeste até obras-primas. E por fim na praça: era comum encontrá-lo na Praça da Alfândega, no centro de Porto Alegre, caminhando no meio as multidão e sentindo-se inteiramente à vontade. Mario sabia que a poesia é coisa humana, e só pode existir em cenários humanos, como a redação do jornal, como o cinema, como a praça – e como um barzinho perdido na noite fria. Falando em barzinho, por que se fica bem, ali? Por causa da mão, apertada e quente, que nos envolve com um carinho materno. É a mão da poesia, no interior da qual Mario Quintana escreveu poemas que, um século depois de seu nascimento, continuam a nos encantar e a nos comover.

Canção de bar


Barzinho perdido
Na noite fria.
Estrela e guia
Na escuridão.
Que bem se fica!
Que bem! Que bem!
Tal como dentro
De uma apertada
Quentinha mão...
E Rosa, a da vida...
E Verlaine que está
Coberto de limo.
E Rimbaud a seu lado,
O pobre menino...
E o Pedro Cachaça
Com quem me assustavam
(O tempo que faz!)
O Pedro tão nobre
Na sua desgraça...
E Villon sem um cobre
Que não pode entrar.
E o Anto que viaja
Pelo alto mar...
Se o Anto morrer,
Senhor Capitão,
Se o Anto morrer,
Não no deite ao mar!
E aqui tão bem...
E aqui tão bom!
Tal como dentro
De uma apertada
Quentinha concha...
E Rosa, a da vida,
Sentada ao balcão.
Barzinho perdido
Na noite fria,
Estrela e guia
Na turbação.
E caninha pura,
Da mais pura água,
Que poesia pura,
Ai seu poeta irmão,
A poesia pura
Não existe não!

“Canções” de Mario Quintana

MOACYR SCLIAR é escritor e médico. Publicou Pai e filho, filho e pai (conto, 2002), Os leopardos de Kafka (romance, 2000), Dicionário do viajante insólito (crônica, 1995), Se eu fosse Rotschild (ensaio, 1993), entre outros mais de 60 livros. Recebeu prêmios literários como o Jabuti, o APCA e o Casa de las Americas e já teve suas obras traduzidas para doze idiomas. É colunista da Folha de São Paulo e pertence à Academia Brasileira de Letras.